Artigo publicado originalmente no Valor Econômico

Por Cecilia Mello*

O Relatório Integrado de Gestão 2024 do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), recentemente divulgado, revela mais do que estatísticas: oferece um retrato preocupante da capacidade das organizações criminosas de utilizar brechas regulatórias para lavar dinheiro, especialmente por meio do mercado de bens de luxo.

Segundo o documento, o número de comunicações suspeitas envolvendo bens de luxo ou de alto valor cresceu quase 25% em um ano – passando de 14.755 registros em 2023 para 18.377 em 2024. Joias, pedras preciosas e metais nobres permanecem sob vigilância, com 2.127 comunicações formais em 2024. Ainda assim, a forma como esse grupo é definido segue vaga. O relatório não detalha quais itens compõem a categoria de “bens de luxo” – o que dificulta a atuação investigativa e prejudica a transparência.

A lacuna é significativa. Aviões e embarcações, por exemplo, aparecem com frequência em apurações sobre ocultação de patrimônio, mas não estão claramente identificados no rol de bens rastreados. Essa imprecisão na taxonomia mina a eficácia do controle financeiro, pois permite que setores inteiros escapem de obrigações mais rígidas.

Além das estatísticas, o Coaf mapeou no relatório as principais estratégias utilizadas para transformar dinheiro de origem ilícita em ativos com aparência de legalidade. Entre os sinais de alerta, destacam-se as compras frequentes e sucessivas de itens de luxo sem justificativa econômica compatível, muitas vezes realizadas por terceiros – os chamados “laranjas” ou “testas de ferro” – para ocultar a identidade do real beneficiário. Outro indício comum é o pagamento em espécie de valores elevados, o que reduz a rastreabilidade da operação e dificulta o controle pelas autoridades. A revenda rápida de bens de luxo a preços abaixo do mercado também aparece como prática típica de esquemas de esquentamento de ativos.

O relatório ainda revela que o mercado de luxo é recorrente em investigações relacionadas à corrupção, tráfico de drogas e fraudes financeiras. Os setores de alto valor são utilizados como meios de movimentação e ocultação de recursos ilícitos, exatamente por sua natureza opaca e, muitas vezes, por operarem com baixa exigência documental e fiscalizatória.

Outros países vêm adotando medidas estruturantes para enfrentar essas fragilidades. França e Itália criaram registros centralizados de bens de luxo, exigindo a identificação do adquirente real e a origem dos recursos. Nos Estados Unidos, o FinCEN (Financial Crimes Enforcement Network), determinou a obrigatoriedade de declaração de titularidade em compras de imóveis de alto valor realizadas em espécie. Conforme publicado no Federal Register dos Estados Unidos, em 29 de agosto de 2024, entre 2017 e o início de 2024, 42% dessas transações estavam ligadas a pessoas ou empresas com histórico de atividades suspeitas.

No Brasil, a ausência de um regramento específico sobre bens de alto valor compromete o avanço da política antilavagem. É urgente a criação de uma classificação precisa e operacional, que permita distinguir entre diferentes tipos de bens e estabeleça exigências proporcionais aos riscos.

A criação de um marco normativo voltado para transações com bens de alto valor não é apenas uma medida de controle, mas também de credibilidade institucional. Sem critérios objetivos, o Brasil permanece vulnerável à crítica de ser um destino permissivo para recursos de origem duvidosa. Um cadastro nacional de bens de luxo, com exigência de informação sobre a origem dos recursos, identidade do beneficiário final e modo de pagamento, é peça-chave para fortalecer a rastreabilidade patrimonial e alinhar o país às melhores práticas internacionais de governança financeira.

Além disso, é indispensável que o Brasil amplie sua atuação em cooperação internacional, especialmente por meio de acordos com unidades de inteligência financeira de outros países e com organismos como o Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional). O Brasil, como membro do Gafi, assumiu o compromisso de seguir suas 40 Recomendações. A Recomendação 22, por exemplo, exige que setores como joalherias e negociadores de objetos de luxo implementem controles de PLD (Prevenção à Lavagem de Dinheiro). Atualmente, o país não cumpre integralmente esse requisito – uma fragilidade que afeta a nota brasileira nas avaliações mútuas em curso.

Em uma economia globalizada, onde os fluxos financeiros atravessam fronteiras com agilidade, a eficácia das políticas antilavagem depende da capacidade de atuação coordenada entre jurisdições. O reforço do papel estratégico do Coaf nessa interlocução global deve ser prioridade para o Estado brasileiro nos próximos anos.

O relatório também registra avanços importantes. Em 2024, o Coaf produziu 18.762 Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs), promoveu mais de 25 mil intercâmbios de dados com autoridades nacionais e 412 trocas com unidades internacionais. Foram aplicadas multas de R$ 44,2 milhões a pessoas físicas e jurídicas por descumprimento de deveres legais. Esses números demonstram a robustez técnica do órgão.

Também merece destaque o avanço institucional do Coaf no uso de tecnologia para triagem automatizada de comunicações, modelos preditivos e análise de risco com Inteligência Artificial, incluindo score de risco e priorização baseada em matriz de fatores.

Mas números, por si, não mudam estruturas. O impacto da inteligência financeira depende de sua integração com o Ministério Público, a Polícia Federal, o Banco Central e a Receita Federal. A zona cinzenta dos bens de luxo exige atenção. Obras de arte, por exemplo, ainda escapam de obrigações legais que já incidem sobre imóveis ou veículos. Sem um marco regulatório específico, esse segmento continuará funcionando como válvula de escape para ocultação de valores ilícitos.

O relatório de 2024 deve ser lido como mais do que prestação de contas. Deve funcionar como sinal de alerta. A lavagem de dinheiro alimenta crimes violentos, redes de corrupção e o financiamento de atividades ilícitas em múltiplos setores. Onde há opacidade, há brecha. Onde há luxo sem regulação, há risco.

Cecilia Mello é sócia e fundadora do Cecilia Mello Advogados. Atuou como desembargadora federal no TRF-3 de 2003 a 2017, advogada e procuradora do Estado de SP de 1985 a 2003. Vice-presidente do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp. Mestre em Direito, Justiça e Cidadania pelo IDP.

 

 

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