Prevista no artigo 71 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), a continuidade delitiva tem por finalidade racionalizar a punição de condutas que, embora praticadas de forma independente, estejam inseridas em um mesmo contexto delitivo. Dessa forma, crimes distintos, quando cometidos em condições semelhantes e com unidade de desígnios, podem ser tratados como se fossem apenas um, no momento da dosimetria da pena[1].
A justificativa para esse instituto parte do pressuposto de que não seria proporcional punir da mesma forma alguém que cometeu reiteradamente o mesmo crime com o mesmo propósito e alguém que praticou delitos distintos por motivações e métodos diversos.
Portanto, a aplicação da continuidade delitiva infere a existência de ações praticadas em idênticas condições de tempo, lugar e modo de execução (requisitos objetivos), além de unidade de desígnios entre os delitos cometidos (requisito subjetivo).
Como consequência do reconhecimento da continuidade delitiva, a pena do crime é aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), a depender do número de infrações e da gravidade dos fatos. Nessa dosimetria, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou um critério progressivo de aumento: 1/6 para dois crimes, 1/5 para três, 1/4 para quatro, 1/3 para cinco, 1/2 para seis e 2/3 para sete ou mais infrações.
Jurisprudência
No Habeas Corpus nº 989.487[2], julgado pela Quinta Turma, uma mulher foi condenada pela prática de 11 furtos, tendo sido aplicada a fração máxima de 2/3 de aumento da pena por continuidade delitiva. A defesa sustentou que o critério numérico, por si só, não seria suficiente para justificar a fração máxima, mas o STJ entendeu que a jurisprudência é pacífica em admitir esse fundamento objetivo para a fixação da fração de aumento.
A jurisprudência também enfrentou a aplicação da continuidade delitiva em relação a crimes mais graves. Nos delitos de estupro de vulnerável, por exemplo, a Terceira Seção do STJ firmou entendimento no Tema Repetitivo 1.202[3] de que é cabível a fração máxima de aumento mesmo sem a exata contagem dos atos praticados, desde que o conjunto probatório indique um longo período com reiteradas condutas abusivas. Nesses casos, a repetição dos abusos é facilitada pela proximidade entre vítima e agressor e pela fragilidade da vítima, que muitas vezes sequer tem condições de precisar quantas vezes foi violentada.
Por outro lado, o intervalo de tempo entre as condutas pode afastar a configuração do crime continuado. Em julgamento sob segredo de justiça, relatado pelo Ministro Sebastião Reis Júnior, a Sexta Turma do STJ afastou a continuidade delitiva ao analisar dois abusos cometidos por um pai contra a filha, ocorridos com um intervalo superior a dois anos. Para o relator, o lapso temporal excessivo descaracteriza a continuidade exigida pelo artigo 71 do Código Penal.
Parâmetros geográficos
Sob outro aspecto, há entendimento de que a prática de crimes em municípios distintos não impede o reconhecimento da continuidade delitiva, desde que se mantenham as demais condições semelhantes. Nesse sentido, no REsp nº 1.849.857[4], a Quinta Turma do STJ confirmou a aplicação do instituto em um caso de tráfico de drogas cometido em duas cidades vizinhas do Rio Grande do Sul, considerando que o intervalo temporal e o modo de execução eram similares.
Contudo, a aplicação da continuidade delitiva exige mais do que a mera repetição de condutas semelhantes: é necessário que os crimes componham um mesmo plano de ação.
A ausência de unidade de desígnios foi determinante, por exemplo, no julgamento do Habeas Corpus nº 936.829[5], em que a Quinta Turma do STJ entendeu pela aplicação de um mero concurso material, isto é, sem continuidade delitiva. No caso, o réu havia cometido dois furtos no mesmo local, mas em horários e condições diferentes — um com arrombamento durante o dia e outro durante a noite — caracterizando habitualidade criminosa, e não desdobramento de um único plano.
Outro ponto relevante é a distinção entre a pena-base e a continuidade delitiva. Ainda que ambos os institutos envolvam a análise de elementos semelhantes, como a gravidade dos crimes e a reiteração das condutas, cada crime permanece autônomo na primeira fase da dosimetria da pena. Isso foi reiterado no julgamento do HC nº 301.882[6], no qual a Sexta Turma do STJ afastou a alegação de reformatio in pejus[7] apresentada pela defesa. Segundo o Ministro Antonio Saldanha Palheiro, a valoração da mesma circunstância sob diferentes aspectos — na pena-base e na continuidade delitiva — não viola o princípio do ne bis in idem, desde que os fundamentos estejam bem delineados.
[1] BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Art. 71 – Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 16 jul. 2025.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 989.487, 5.ª Turma, Relator: Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 26 mar. 2025. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&sequencial=303671143&num_registro=202500924477&data=20250328. Acesso em: 16 jul. 2025.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema Repetitivo n. 1202, Terceira Seção, Relator: Ministro Teodoro Silva Santos, julgado em 17 out. 2023. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1202&cod_tema_final=1202. Acesso em: 16 jul. 2025.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.849.857, 5.ª Turma, Relator: Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 13 dez. 2019. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=104573027&num_registro=201903492693&data=20191217. Acesso em: 16 jul. 2025.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 936.829, 5.ª Turma, Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 21 ago. 2024. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&sequencial=265400577&num_registro=202403011849&data=20240823. Acesso em: 16 jul. 2025.
[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 301.882, 6ª Turma, Relator: Ministro Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 01 fev. 2022. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&sequencial=143350760&num_registro=201402078675&data=20220202. Acesso em: 16 jul. 2025.
[7] O princípio da reformatio in pejus é o princípio processual penal segundo o qual a situação do réu não pode ser agravada em grau de recurso quando apenas ele ou seu defensor interpuseram recurso. Ou seja, se apenas a defesa recorre de uma sentença condenatória, o tribunal não pode piorar a situação do réu, aumentando a pena ou reconhecendo novas circunstâncias desfavoráveis.