Artigo publicado na Revista do Advogado | No 154 | JUN | 2022.

A JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL DE CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA VERSUS A AÇÃO ANULATÓRIA DO DÉBITO CORRESPONDENTE

THE JUST CAUSE FOR CRIME AGAINST TAX ORDER IN COUNTERPOINT WITH ANNULMENT ACTION OF CORRESPONDING DEBT

Cecilia Mello, Advogada e Desembargadora Federal Aposentada.

Marcella Halah Martins Abboud, Advogada mestranda em Direito pela PUC/SP.


Resumo: A partir da constituição do crédito tributário, abordamos os desdobramentos jurídicos na seara administrativa, cível e penal, em especial as possibilidades legais de suspensão de exigibilidade do crédito tributário. O estudo que objetiva a compreensão da aplicabilidade do artigo 93 do Código de Processo Penal c/c o artigo 116 do Código Penal, cuja interpretação normativa pode apresentar benefícios significativos ao contribuinte.

Palavras-chave: Débito tributário – Direito penal tributário – Ação de anulação de débito tributário.

Abstract: Beginning with the achievement of the tax credit, we approach the legal consequences in the administrative, civil and criminal scope, specially the legal possibilities of suspending the tax credit enforceability. This study aims to demonstrate the comprehension about the Criminal Procedure Code, article 93 jontly with the Penal Code article 116 applicability, which the normative interpretation can assure important advantages to the taxpayer.

Keywords: Tax law – Tax criminal law – Tax credit cancellation action.


Sumário

1. Introdução
2. Crédito tributário
3. Ação anulatória de débito tributário
4. Crimes contra a ordem tributária
5. Prejudicialidade e suspensão da exigibilidade do crédito tributário
6. Conclusão
Referências


1. Introdução

O procedimento fiscal de constituição do crédito tributário abarca o ato transgressor da legislação tributária, a definição do sujeito passivo e as modalidades de lançamento até a efetiva constituição definitiva desse crédito.

Constituído o crédito pela administração pública, é faculdade do contribuinte ingressar com ação anulatória de débito fiscal, a fim de serem revistas eventuais ilegalidades ou inconstitucionalidades do ato administrativo. Ao Ministério Público compete, na condição de titular do direito de ação na ação penal pública incondicionada, o ajuizamento da ação penal por delitos contra a ordem tributária, enquanto ao Fisco cabe a promoção da ação de execução fiscal para cobrança do valor devido.

No contexto dessa estrutura procedimental, e havendo ação penal por crime contra a ordem tributária, discute-se a existência de prejudicialidade externa da ação anulatória de débito eventualmente proposta pelo contribuinte, nos termos do artigo 93 do CPP. Consequentemente, se configurada essa prejudicialidade, despontaria a ausência de justa causa para o recebimento da denúncia, obstando também o prosseguimento da ação penal.

2. Crédito tributário

O crédito tributário decorre do descumprimento de uma obrigação tributária por parte do contribuinte, ou seja, pressupõe a transgressão de um dever jurídico pelo sujeito passivo (contribuinte) face a Fazenda Pública. Sob outra ótica, com o surgimento da obrigação tributária pela ocorrência do fato gerador, desponta o dever jurídico de adimplemento da obrigação pelo contribuinte de um lado, e a pretensão do Fisco de transformar a obrigação inadimplida em crédito tributário pela prática do lançamento, de outro. [1] (ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP, 2018, p. 08)

O conceito de crédito tributário e o seu respectivo lançamento são objeto de divergências doutrinárias. A teoria monista defende que “nascida a obrigação tributária, o crédito já a integra indissociavelmente”. Por sua vez, a corrente dualista (incorporada posteriormente ao direito italiano e que influenciou os civilistas brasileiros [2] (LACOMBE, 2006, p. 303)) entende ser necessário o lançamento do crédito tributário para o surgimento da obrigação. [3] (ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP, 2018, p. 08)

Definida a obrigação tributária como um dever pecuniário do contribuinte diante do Fisco, na intelecção do artigo 142 do Código Tributário Nacional, é competência privativa da autoridade administrativa a constituição do crédito por meio de seu lançamento:

“Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível” (artigo 142 do CTN) [4].

O lançamento tributário pode ser procedido [5]: (i) de ofício (artigo 149 do CTN), hipótese que se aplica aos casos nos quais o lançamento e a notificação ao contribuinte são imprescindíveis para a quantificação do valor devido e a viabilização do pagamento pelo contribuinte, quando a lei assim o determine; (ii) por declaração (artigo 147 do CTN), que consiste na situação em que o contribuinte presta informações sobre fatos ao ente fiscalizador que, na posse delas, praticará o ato administrativo tornando líquido, certo e exigível o crédito tributário e oportunizando sua quitação; ou (iii) por homologação (artigo 150 do CTN), modalidade de lançamento mais comum, que consiste no lançamento tributário pela entrega de declarações fiscais pelo contribuinte que realiza toda a atividade de cálculo e pagamento, nos termos da Súmula 436 do Superior Tribunal de Justiça: “a entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer providência por parte do Fisco” [6]. (ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP, 2018, p. 15)

Uma vez realizado o lançamento do crédito tributário, ele se torna irreversível administrativamente e irrevogável, com exceção às situações expressamente elencadas nos artigos 145 e 149, ambos do Código Tributário Nacional. Todavia, o ato administrativo poderá ser confirmado, modificado ou anulado. A anulação pode ser administrativa ou judicial e decorre de eventual ilegalidade; a revogação, por seu turno, decorre do juízo de oportunidade e conveniência exercitado sobre o ato administrativo pela Administração Pública. [7] (ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP, 2018, p. 23)

Encerrada a esfera administrativa, esgota-se a atribuição privativa da administração pública em sede de lançamento, gerando uma presunção de que a decisão fixou definitivamente o quantum debeatur. Mas, essa presunção é relativa, pois há possibilidade de revisão pelo Poder Judiciário.

3. Ação anulatória de débito tributário

A ação anulatória de débito tributário está prevista no artigo 38 da Lei nº 6.830/80 [8] e tem o escopo de, após o efetivo lançamento tributário, anular qualquer ato administrativo que esteja supostamente eivado de ilegalidade ou de inconstitucionalidade e que possa lastrear uma cobrança tributária.

Referida ação anulatória tem o condão de anular, total ou parcialmente, ato administrativo de imposição tributária (lançamento propriamente dito) ou ato de imposição de penalidade (auto de infração). Impende destacar que a ação anulatória pressupõe a existência de ato administrativo, não sendo possível manejar a anulatória anteriormente ao lançamento do crédito tributário ou a qualquer ato desfavorável ao contribuinte. [9]

Após o procedimento administrativo prévio de consolidação e lançamento do crédito tributário, há quatro situações à disposição do contribuinte: (i) pagar o tributo lançado; (ii) socorrer-se de recurso na esfera administrativa; (iii) ajuizar medida judicial; ou (iv) simplesmente ficar inerte.

A despeito de o artigo 38 da Lei nº 6830/80 expressar exigência de depósito prévio do valor do débito para ajuizamento da ação anulatória, em razão do princípio do amplo acesso à justiça, essa determinação não mais é aplicada [10]. Atualmente, a exigência de depósito prévio do valor do débito é tratada pela jurisprudência como mera faculdade e não como condição da ação ou pressuposto de procedibilidade. Referido entendimento restou consolidado com a edição da Súmula Vinculante nº 28 do Supremo Tribunal Federal: “É inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário” [11].

Contudo, nos termos do artigo 151 do CTN, cujo rol é taxativo [12], a realização do depósito integral da quantia exigida pelo Fisco constitui hipótese de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (II), assim como a moratória (I), as reclamações e recursos administrativos (III), a concessão de medida liminar em mandado de segurança (IV), ou mesmo a concessão de liminar ou tutela antecipada em outra modalidade de ação (V), bem como o parcelamento (VI), de modo que a Fazenda fica impedida de praticar atos executivos, suspendendo-se a execução fiscal enquanto permanecer hígida a causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário. (COSTA, 2021, p. 323)

Em matéria penal, a justa causa é premissa essencial à ação penal e se consubstancia com a existência de uma causa jurídica e fática que legitime e justifique a acusação, bem como a própria intervenção penal [13] (LOPES, 2021, p. 241/242). Assim, a ausência de justa causa inviabiliza a persecução e acarreta o trancamento da ação penal.

Na vigência dessa suspensão, tem-se por ausente exatamente a justa causa para ação penal, eis que o crédito tributário, cuja exigibilidade encontra-se suspensa, se confunde com o próprio resultado típico do crime tributário material.

Sob outra vertente, ajuizada a ação anulatória de débito fiscal e não sendo verificada nenhuma das causas suspensivas de exigibilidade previstas no artigo 151 do Código Tributário Nacional, a discussão acerca do crédito tributário poderá tramitar paralelamente à prática de atos de cobrança, inclusive judiciais, tendentes à constrição e expropriação do patrimônio do contribuinte, com espeque no artigo 784, §1º, do Código de Processo Civil [14].

Nesse particular, para o reconhecimento de conexão das ações anulatória e executiva, bem como a consequente determinação de reunião para processamento e julgamento em conjunto são necessários os seguintes requisitos: inexistência de vara especializada, competência relativa para julgamento dos referidos processos (artigo 54 do CPC) e que a reunião dos processos anteceda a prolação de sentença (artigo 55, § 1º, CPC). [15] (PRIA, 2022)

Ademais, relativamente à discussão de possibilidade de obtenção de certidão positiva com efeitos de negativa de débito durante a suspensão de exigibilidade do crédito, o Superior Tribunal de Justiça vem consolidando entendimento jurisprudencial no sentido de que “a simples discussão judicial do crédito tributário por meio da propositura de ação anulatória de débito fiscal, mesmo quando a parte devedora é ente público, não induz à suspensão da exigibilidade do crédito, nem confere o direito à obtenção de certidão positiva com efeitos de negativa de débito”. [16]

Nesse contexto, ajuizada a ação anulatória de débito fiscal pelo contribuinte e não se vislumbrando qualquer das causas suspensivas da exigibilidade do crédito, o Ministério Público poderá oferecer denúncia a fim de obter a condenação por crime contra a ordem tributária.

4. Crimes contra a ordem tributária

A incolumidade da ordem tributária é bem jurídico de estatura constitucional consagrada nos artigos 170 e seguintes, de modo que, integrando o que se denomina Constituição Econômica, a tutela penal desses bens jurídicos também está constitucionalmente autorizada. [17] (ALMEIDA, 2015, p. 90/91)

O não pagamento do crédito tributário definitivamente constituído enseja a propositura da ação de execução fiscal pela Fazenda Pública, o manejo de ação anulatória de débito fiscal pelo contribuinte e, se o fato estiver tipificado como crime nos termos da Lei n° 8.137/90, ainda há a possibilidade de propositura de ação penal pelo Ministério Público.

Os crimes contra a ordem tributária estão previstos na Lei nº 8.137/90, especificamente nos artigos 1º (crimes de resultado material) e 2º (crime de mera conduta), que tratam das condutas dos particulares contra a administração pública. Os autores desses delitos são o contribuinte e/ou o responsável pela prática das condutas comissivas ou omissivas previstas na lei; são os sujeitos passivos da obrigação tributária, conforme definição dada pelo artigo 121, parágrafo único, do Código Tributário Nacional. Conclui-se, por oportuno, que o contribuinte é todo aquele que apresenta relação pessoal direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador. [18] (ALMEIDA, 2015, p. 99/101)

Durante a vigência da antiga Lei nº 4.729/65, o então designado crime de sonegação fiscal era definido como crime de mera conduta. À vista disso, ao não exigir o resultado naturalístico para sua configuração, consolidou-se, à época, a ideia de independência e autonomia entre as esferas, possibilitando desfechos contraditórios e, pior, permitindo decisões penais condenatórias quando ainda em curso o processo administrativo tributário. [19] (HARADA, 2015, p. 263)

Na visão do tributarista Kiyoshi Harada, a tese da independência da esfera criminal, formada à luz da doutrina e da jurisprudência na vigência da Lei de Sonegação Fiscal (Lei nº 4.729/65), há de ser reformulada e repensada diante da superveniência da Lei nº 8.137/90, que definiu os crimes contra a ordem tributária. [20] (HARADA, 2015, p. 278)

Dessa forma, somente com o advento da Lei nº 8.137/90 é que esse entendimento passou a ser abordado por meio de outro viés, inserindo-se no contexto o debate a respeito da prejudicialidade externa da discussão administrativa do débito a comprometer a propositura e/ou o prosseguimento da ação penal. [21] (HARADA, 2015, p. 265 e 281)

No bojo do HC 81.611/DF [22], em voto e julgamento paradigma, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, reconheceu a prejudicialidade da ação penal na pendência de processo administrativo tributário sob o fundamento de falta de justa causa, enquanto não houvesse decisão definitiva do processo administrativo de lançamento. Além disso, decidiu-se por suspender o curso do lapso temporal da prescrição enquanto obstada a propositura da ação penal pela ausência do lançamento definitivo.

Passados alguns anos, o E. Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 24 a fim de consolidar esse entendimento: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.” [23]

Entende-se por lançamento definitivo do tributo a exaustão da via administrativa, com a lavratura do auto de infração e a consequente notificação do contribuinte, haja vista que, anteriormente à decisão administrativa final, sequer há o resultado do tipo tributário material e, de acordo com o enunciado da Súmula, não há tipicidade. Este corolário deriva da conjugação dos artigos 142 (competência privativa da administração para o lançamento) e 151 (suspensão de exigibilidade do crédito tributário), ambos do Código Tribunal Nacional.

Assim, por serem materiais ou de resultado, os crimes contra a ordem tributária se configuram com a supressão ou a redução do tributo, contribuição social ou qualquer acessório, obtidas mediante uma das condutas descritas nos incisos do artigo 1º da Lei nº 8.137/90.

5. Prejudicialidade e suspensão da exigibilidade do crédito tributário

O Código Tributário Nacional, para além das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário previstas no seu artigo 151 e já referidas acima, estabelece no seu artigo 156 as modalidades de extinção do crédito tributário, dentre as quais, o pagamento (I) e a conversão do depósito em renda (VI), que guardam interesse com a presente reflexão.

Como visto, a presença de uma das causas de suspensão da exigibilidade enumeradas no artigo 151 do CTN, impede o Fisco de exercitar atos de cobrança e, por via de consequência, inviabiliza o ajuizamento de execução fiscal até cessar a eficácia da causa suspensiva, cenário que também ocasiona a suspensão da contagem do prazo prescricional. [24] (COSTA, 2021, p. 265)

Há controvérsia em relação à modalidade de suspensão prevista no inciso II do referido artigo 151, que trata do depósito integral do débito pelo contribuinte, seja no processo administrativo, seja no processo judicial.

O teor da Súmula nº 112 do Superior Tribunal de Justiça [25] preconiza que, para o depósito gerar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário, deverá necessariamente ser feito integralmente em dinheiro. Atualmente, compreende-se que o depósito, para os fins do artigo 151 do CNT, pressupõe o atendimento dos requisitos estabelecidos na mencionada Súmula, haja vista a possibilidade de conversão em renda do montante acautelado, em benefício do Fisco, se improcedente a ação anulatória de débito ou a defesa administrativa [26]. (HARADA, 2015, p. 278)

No ponto, o que se discute é exatamente a possibilidade de a garantia ser prestada por outros meios, que não o depósito em dinheiro, mas também ensejando a suspensão da exigibilidade do crédito tributário e afastando, por consequência, a justa causa para a ação penal. Isso porque, outras modalidades de garantia também podem resultar no adimplemento da obrigação tributária, e.g., penhora de imóvel, caução, seguro-garantia, fiança bancária etc.

A partir do pressuposto de que o objetivo da ação penal é tutelar o bem jurídico da ordem tributária, que se efetiva por meio do recebimento do valor desse crédito, qualquer uma das modalidades acima indicadas deveria ser aceita com o objetivo de satisfação total da obrigação tributária. Uma vez satisfeita, seria capaz de extinguir a punibilidade, pois não há crime sem ofensa ao bem jurídico protegido [27]. (TANGERINO, 2018, p. 64/66)

Não obstante o entendimento consolidado acerca da necessidade de o depósito ser integral e em dinheiro para fins de suspensão da exigibilidade do crédito, há registro de precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo acolhendo outras modalidades de garantia, considerando, seja a garantia do débito por meio de penhora de imóvel de valor superior, em sede de execução fiscal para viabilizar a interposição de embargos [28], seja a concessão de fiança bancária para garantir ação anulatória de débito [29]. No primeiro, houve a absolvição e, no segundo, o trancamento do inquérito por ausência de lesividade ao bem jurídico tutelado. Entretanto, o atual entendimento dos Tribunais Superiores sobre a matéria ventilada não é nesse sentido [30].

A partir do leading case (HC 81.611/DF), que precedeu a edição da Súmula Vinculante nº 24, ficou estabelecido que o crime material contra a ordem tributária de sonegação fiscal não se tipifica antes do lançamento definitivo do tributo. Assim, é possível concluir que, pendente decisão definitiva acerca do crédito tributário, inexiste justa causa para a ação penal.

Nessa linha de intelecção, invocamos o artigo 93 do Código de Processo Penal [31] que aborda a questão prejudicial heterogênea. Explica-se: caso o reconhecimento da existência da infração penal dependa de prévia decisão sobre questão diversa afeta à análise do juízo cível (e.g. ação anulatória em trâmite), cabe a suspensão do curso da ação penal até que seja proferida decisão final da esfera cível, em alusão aos princípios da segurança jurídica e da não surpresa. alusão aos princípios da segurança jurídica e da não surpresa. Mais que isso, o Código Penal em seu artigo 116, inciso I, preconiza que “enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência de crime” suspende-se o lapso prescricional. Desse modo, ausente prejuízo de qualquer natureza ao Fisco.

Em que pese a independência das instâncias, o inciso XXXV [32] do artigo 5º da Constituição Federal, bem como os princípios do devido processo legal e da ampla defesa, não podem ser deixados de lado e somente reforçam o entendimento de que, havendo ilegalidade ou inconstitucionalidade, o contribuinte não pode ter seu direito de averiguar essas questões na esfera cível tolhido. [33] (MACHADO, 2011, p. 326)

Destarte, a suspensão da ação penal até o deslinde definitivo da ação anulatória em curso [34], desde que esta esteja devidamente garantida, traduz a mais acertada interpretação e efetivação das garantias constitucionais, além de evitar que sejam proferidas decisões conflitantes sobre o mesmo fato gerador.

6. Conclusão

Em nossa visão, há necessidade de a matéria tratada ao longo do texto ser adequadamente disciplinada, especialmente quanto ao núcleo de intersecção da ação penal por crime contra a ordem tributária com a correspondente ação anulatória do débito.

A Lei nº 9.964/00 disciplina o Programa de Recuperação Fiscal (Refis), que tem o objetivo de facilitar a regularização e renegociação de dívidas tributárias ou não tributárias de pessoas jurídicas ou físicas perante a União, oferecer negociação de diversas modalidades [35] e garantir alguns benefícios extrapenais, a exemplo da suspensão da pretensão punitiva para os casos de inclusão no programa. (GIOIA, 2022)

Ocorre que a Lei do Refis condiciona a adesão ao parcelamento à: (i) confissão irrevogável e irretratável dos débitos (artigo 3º, inciso I); (ii) renúncia ao direito de discutir o débito tributário (artigo 2º, § 6º); e (iii) prestação de garantia (artigo 3º, § 4º). Por via de consequência, a adesão suspende tanto o curso da ação penal, quanto o lapso prescricional (artigo 15, § 1º).

Caso o contribuinte adimpla integralmente o débito objeto de parcelamento, extingue-se a punibilidade dos crimes que lhe foram imputados (artigo 15 § 3º) [36]. Por outro lado, o descumprimento do parcelamento enseja a retomada dos atos executórios pelo Fisco, bem como da ação penal pelo Ministério Público.

A Lei do Refis confere ao contribuinte o benefício da suspensão da ação penal e da extinção da punibilidade ao término do pagamento, mas sempre vinculado à prévia confissão do débito e renúncia do direito de discuti-lo. Efeitos similares deveriam ser conferidos nas hipóteses de ação anulatória de débito, onde o juízo esteja indiscutivelmente garantido, ainda que não pelo depósito integral em dinheiro, justamente para possibilitar a ampla discussão judicial da decisão administrativa fiscal, sem o constrangimento da iminência de uma ação penal. Sob outro enfoque, para que a ameaça da persecução penal não seja o condutor da confissão do débito e da renúncia do direito de contestá-lo como forma de viabilizar a inclusão em parcelamento.

Tal conclusão decorre da interpretação do artigo 93 do Código de Processo Penal, que trata da prejudicialidade externa da ação anulatória, combinado com o inciso I do artigo 116 do Código Penal, que obsta o curso do lapso prescricional “enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime”.

Assim, perfeitamente possível que se suspenda a ação penal, bem como o curso do prazo prescricional, até que seja definida a controvérsia no espectro da ação anulatória.

Trata-se de interpretação jurídica mais consentânea com a Constituição Federal por prestigiar a garantia da segurança jurídica e do due process of law em sua inteireza. Dessa forma, caso haja discussão concomitante nas duas esferas, há prejudicialidade heterogênea (externa) frente à possibilidade de anulação do débito tributário e, à vista disso, ausência de justa causa para a instauração ou prosseguimento da ação penal. É nessa perspectiva que os Tribunais Superiores devem refletir e analisar a controvérsia, ou seja, a partir de uma visão menos restritiva e literal e mais sistemática acerca do direito posto em discussão.


Notas

1. CTN, art. 142. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l5172compilado.htm. Acesso em: 25 mar. 2022.

2. STJ, Súmula no 436. Disponível em: https://www.stj.jus.br/ docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2017_42_capSumula436-440.pdf. Acesso em: 25 mar. 2022.

3. Art. 38 da Lei no 6.830, de 22 de setembro de 1980: “A discussão judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública só é admissível em execução, na forma desta Lei, salvo as hipóteses de mandado de segurança, ação de repetição do indébito ou ação anulatória do ato declarativo da dívida, esta precedida do depósito preparatório do valor do débito, monetariamente corrigido e acrescido dos juros e multa de mora e demais encargos. Parágrafo único – A propositura, pelo contribuinte, da ação prevista neste artigo im- porta em renúncia ao poder de recorrer na esfera administrativa e desistência do recurso acaso interposto”.

4. TRILHANTE. Ações Tributárias – ação anulatória. Disponível em: https://trilhante.com.br/curso/processo-tributario/aula/acoes-tributarias-acao-anulatoria-2. Acesso em: 23 mar. 2022.

5. TRILHANTE. Ações Tributárias – ação anulatória. Disponível em: https://trilhante.com.br/curso/processo-tributario/aula/acoes-tributarias-acao-anulatoria-2. Acesso em: 23 mar. 2022.

6.STF, Súmula Vinculante no 28. Disponível em: https:// jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula777/false. Acesso em: 25 mar. 2022.

7. Art. 784, § 1o, do CPC – “A propositura de qualquer ação relativa a débito constante de título executivo não inibe o credor de promover-lhe a execução”.

8. STJ, Recurso Especial no 414.062-SC. Disponível em: https:// processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?tipoPesquisa=tipoPesquisaNumeroRegistro&termo=200200161425&totalRegistrosPor Pagina=40&aplicacao=processos.ea. Acesso em: 25 mar. 2022.

9. STF, Habeas Corpus no 81611-DF. Disponível em: http:// portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=1990524. Acesso em: 29 mar. 2022.

10. STF, Súmula Vinculante no 24. Disponível em: https:// jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/seq-sumula773/false. Acesso em: 29 mar. 2022.

11. STJ, Súmula no 112. Disponível em: https://www.stj.jus.br/ docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2010_8_capSumula112.pdf. Acesso em: 30 mar. 2022.

12. TJSP, 12a Câmara de Direito Criminal, Apelação Criminal no 0011027-78.2004.8.26.0506, Rel. Des. Paulo Antônio Rossi, j. 16/10/2013: “No entanto, em observância ao art. 34 da Lei 9.249/95, segundo o qual ‘extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei no 8.137/90 e na Lei no 4.729/65 quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia’, a expressão “promover pagamento’ deve ser entendida, ‘para efeitos penais, como qualquer providência tomada pelo agente visando, mesmo que de forma indireta, o cumprimento da obrigação de recolher tributo’ não cabendo ‘ao intérprete estipular que a forma de paga- mento se dê nos moldes preconizados no CTN, quando a própria lei não o fez’ TRF 3a região, HC 8437, 1a Turma, DJ de 29.06.1999). Dessa forma, com a respectiva garantia do Juízo materializada no imóvel do réu, é motivo suficiente para ensejar a sua absolvição”.

13. TJSP, 12a Câmara de Direito Criminal, HC no 993.08.017052-5, Rel. Des. Celso Limongi, j. 25/7/2008: “se a ação anulatória de débito fiscal for julgada improcedente, a dívida será quitada, por- quanto está ela garantida pela carta de fiança. Isto significa que, qualquer que seja o resultado da ação anulatória, não haverá lesividade ao Estado. E, sem lesividade, não há crime”.

14. STF: AgRg no REsp no 423.573-SP, RHC no 65.221-PE, AgRg no AgRg no REsp no 1.159.950-RS e RHC no 42.644-SP, AREsp no 831642.

15. Art. 93 do CPP – Se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão sobre questão diversa da prevista no artigo anterior, da competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente.

16. Art. 5o, inciso XXXV, da CF – “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

17. TRF-2, 2a Turma Especializada, HC no 4869 RJ 2006.02.01.013033-9, Rel. Des. Federal Liliane Roriz, j. 10/4/2007.

18. Lei no 9.964/2000. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l9964.htm. Acesso em: 31 mar. 2022.


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