O dia 28 de junho é considerado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIAP+[1]. A data tem como principal objetivo promover a conscientização da população sobre a importância do combate à homofobia e a transfobia para a construção de uma sociedade justa, plural e livre de preconceitos, independentemente da orientação sexual e identidade de gênero. É um momento simbólico para refletirmos sobre os obstáculos que ainda enfrentamos – e necessitamos superar – de maneira a darmos efetividade a esse propósito.
O direito não passa ileso ao simbolismo de gênero. O modo de funcionamento do sistema de justiça criminal também não. Pelo contrário, o processo penal e a forma de funcionamento do sistema criminal não só reproduzem desigualdades sociais baseadas no gênero, como produzem muitas dessas assimetrias.[2]
Recentemente, a 10ª C. Criminal do TJSP, em julgamento não unânime, negou provimento ao RESE nº 1500028-93.2021.8.26.0312, interposto pelo MP contra decisão de primeiro grau que negou a concessão de medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha[3], em razão de a vítima ser transgênero e não pertencer ao sexo feminino no sentido biológico. Ao argumento de que o conceito de “mulher” previsto na CF deve ser interpretado no sentido científico, o voto condutor conclui pela impossibilidade jurídica de equiparação[4], ‘transexual feminino = mulher’, sob “pena de ofender princípios constitucionais de importância para todos (inclusive dos transexuais; …)”.
O sistema sexo-gênero (conceito geralmente expresso como gênero) surgiu no pensamento ocidental no final do século XX, em momento de grande confusão epistêmica entre humanistas, pós estruturalistas e pós-modernistas. Kate Millet, autora da obra Sexual Politics (1970), e Gabil Rubin, com o artigo The Traffic in Women: Notes on the “Political Economy” of Sex (1975), foram precursoras no tratamento do tema perante o mundo e conceberam o gênero como um sistema de relações sociais que transforma a sexualidade biológica, ou seja, o gênero como um produto da atividade humana.[5]
Na década de noventa, Joan Scott, uma das mais importantes estudiosas da história sobre essa temática[6], revolucionou o próprio conceito de gênero, ao defini-lo como “elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas distinções que diferenciam os sexos, como também, uma forma primária de relações significantes de poder.”[7]
Nesse contexto, a análise da condição de mulher sob a ótica de gênero representa importante ruptura epistemológica do quanto assentado nas últimas décadas nas ciências sociais, uma vez que, a partir daí, são desconstruídos estudos que invisibilizavam a mulher e adotavam a perspectiva masculina como universal e como protótipo do humano, em uma visão evidentemente androcêntrica.[8]
Partindo-se da premissa de que o reconhecimento de direitos faz parte de um processo de construção permanente, a trajetória do direito à própria identidade social e sexual tem sido árdua, tanto sob a ótica dos avanços jurídicos, quanto sob o viés de aceitação e inclusão social.
O episódio conhecido como Stonewall Uprising é considerado como marco inicial da luta pelos direitos humanos LGBT (atualmente, LGBTQIAP+)[9] nos EUA e em todo o mundo. Em 28 de junho de 1969, a polícia de Nova York invadiu o Stonewall Inn, um clube gay localizado em Greenwich Village, na cidade de Nova York. A batida gerou um motim entre clientes e moradores do bairro, uma vez que a força policial arrastou funcionários e frequentadores para fora do bar, levando a seis dias de protestos e violentos confrontos com as autoridades[10].
Fato é que a década de 60 não foi favorável para lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros americanos; por exemplo, a solicitação de relações entre pessoas do mesmo sexo era ilegal na cidade de Nova York[11].
No entanto, com o passar dos anos, a comunidade ganhou força. Passou a contar com o apoio de parte da opinião pública e política e com a adesão e união de diversas pessoas, inclusive simpatizantes, que lutaram, e ainda lutam, pela igualdade de direitos. Nesse contexto, merece destaque a Resolução do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de n. A/HRC/17/L.9, verdadeiro marco legal que reconheceu os direitos LGBTQIAP+ como parte integrante dos Direitos Humanos.[12]
Gradualmente, as identidades transgêneros têm se tornado mais sutis e complexas, muitas vezes incompatíveis com as divisões binárias e estereotipadas de gênero que foram cristalizadas pela sociedade. Esse contexto desafiou conceitos equivocados baseados na patologização da diversidade de gênero, resultando, em 1994 (DSM IV)[13], na substituição do termo “transexualismo” por transtorno de identidade de gênero (TIG). Dessa forma, restou claramente delimitado o fato de se tratar de um estado psicológico no qual a identidade de gênero está em desacordo com o sexo biológico.
A utilização da nomenclatura “transexualismo” vem sendo substituída no Brasil de forma gradativa, inclusive na jurisprudência pátria. Isto porque, apesar de o DSM IV TR ter retirado do seu rol de diagnósticos o termo “transexualismo”, a categoria “F64 – Transtornos da identidade sexual”, integrante da Classificação Internacional de Doenças CID-10, traz o “transexualismo” como subitem (F64.0), ao lado de travestismo bivalente (F64.1), transtorno de identidade sexual na infância (F64.2), outros transtornos da identidade sexual (F64.8) e transtorno não especificado de identidade sexual (F64.9)[14].
Em 2018, durante lançamento da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11), a OMS anunciou a retirada dos “transtornos de identidade de gênero” do capítulo de doenças mentais[15].
Com a mudança, a classificação passa a ser de “incongruência de gênero” e estará inserida no capítulo sobre saúde sexual. Isto porque, apesar das evidências no sentido de não caracterizar transtorno mental, permanece a necessidade de garantir atendimento às demandas específicas de saúde da população trans, justificando a sua permanência na CID[16]. A CID 11 entrará em vigor em 1º de janeiro de 2022[17].
A esse respeito, no bojo do RE 845779/SC[18] julgado em 2014, cuja questão jurídica debatida foi a possibilidade de transexual utilizar banheiro público privativo do sexo oposto, em destaque ao conceito adotado pela OMS, constata-se a utilização do termo “transexualismo”, justamente por constar da vigente – CID 10.[19]
No julgamento da ADPF 457 pelo STF[20], porém já em 2020, verifica-se a utilização do termo “transexualidade”, definido a partir da identidade de gênero. Na espécie, consignou-se que, segundo a Corte Interamericana, “identidade de gênero foi definida como “(…) a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, o qual pode ou não corresponder com o sexo assinalado no momento do nascimento.”[21].
Além disso, consta no texto que “o reconhecimento da identidade de gênero encontra-se ligado necessariamente à ideia segundo a qual o sexo e o gênero devem ser percebidos como parte de uma construção identitária que resulta da decisão livre e autônoma de cada pessoa, sem que se deva estar sujeita à sua genitália. Dessa forma, o sexo, assim como as identidades, as funções e os atributos construídos socialmente que se atribuem a diferenças biológicas em todo o sexo assinalado ao nascer, longe de constituir-se em componentes objetivos e imutáveis do estado civil que individualiza uma pessoa, por ser um fato da natureza física ou biológica, terminam sendo traços que dependem da apreciação subjetiva de quem o detenha ou residam em construção da identidade de gênero autopercebida relacionada com o livre desenvolvimento da personalidade, a autodeterminação sexual e o direito à vida privada”[22].
Fato é que, no mundo, os índices de violência contra transexuais são altos, inclusive aqueles com resultado morte. De acordo com dados da ONG TgEU (Transgender Europe), a maioria dos homicídios ocorreu no Brasil (152), México (57) e EUA (28), totalizando 3.664 casos notificados em 75 países e territórios em todo o mundo entre 01/01/2008 e 30/09/2020; 82% de todos os assassinatos registrados aconteceram na América Central e do Sul, 43% no Brasil.[23]
A Lei Maria da Penha surge diante da necessidade de coibir e prevenir a violência de gênero no âmbito doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto (art. 1º)[24]. Essa preocupação se ancora no §8º do art. 226 da CF[25], que confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. De acordo com o E. STF, “a Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão ‘família’, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa”[26] e pouco importa “se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos”.
O art. 2º da referida lei dispõe que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”
Em complemento, o art. 5º da Lei prevê que a violência doméstica e familiar contra a mulher se configura a partir de qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, nos termos dos incisos I, II e III. O parágrafo único do mesmo dispositivo consigna que as relações pessoais enunciadas independem de orientação sexual.
Sob nossa perspectiva, o conceito de mulher trazido pela Lei Maria da Penha suplanta o perfil biológico binário (sexo feminino/sexo masculino) e a identificação dos destinatários da Lei deve abarcar amplo entendimento acerca do conceito de mulher. É necessário que a identidade de gênero seja definida como a experiência pessoal de gênero, o que pode ou não corresponder ao sexo atribuído de forma biológica. Desse modo, imprescindível a compatibilidade ao gênero com o qual a vítima se identifica psicologicamente, fisicamente e/ou socialmente.[27]
Maria Berenice Dias, que se dedica a questionar leis e decisões que contenham qualquer tipo de discriminação em relação à mulher e aos segmentos vulneráveis, entende que “lésbicas, transsexuais, travestis e transgêneros, que tenham identidade social com o sexo feminino, estão sob a égide da Lei Maria da Penha.”[28]. Além disso, defende que a agressão contra essas pessoas no âmbito familiar, efetivamente, constitui violência doméstica e que descabe deixar à margem da proteção legal aqueles que se reconhecem como mulher[29].
Mas o Direito tem sido, na maior parte das vezes, recalcitrante na solução dos problemas enfrentados pelos transgêneros, que demandam soluções uniformes e mais inclusivas por parte do Poder Judiciário.[30]
À luz das garantias constitucionais previstas no art. 5º da CF, a partir de março de 2018, o STF, no julgamento da ADI 4.275/DF[31], por maioria dos votos, entendeu que os transgêneros podem alterar o nome e gênero no registro civil, independentemente de cirurgia de transgenitalização e de decisão judicial. E o Provimento nº 78/2018[32], do CNJ, definiu os procedimentos para essa mudança, estabelecendo que os interessados podem solicitar as alterações nos cartórios de todo o país sem a presença de advogados ou de defensores públicos.
Ora, se o ordenamento jurídico brasileiro confere à pessoa transgênero a possibilidade de substituir seu prenome e gênero, independentemente de cirurgia de transgenitalização, a discussão acerca do cabimento da proteção dada pela Lei Maria da Penha à mulher transexual, dentro das premissas estabelecidas na referida norma, não deveria sequer ser aventada.
Mais do que isso, desde 2008, o SUS oferece cirurgias de redesignação sexual, além de tratamento multidisciplinar no processo transexualizador antes e após a operação, terapia hormonal com estrógeno ou testosterona, e acompanhamento clínico, conforme Portaria nº 2.803/2013[33].
Portanto, deveria se tratar de uma máxima incontestável, da mesma forma que questões inatacáveis não podem ser – como efetivamente não são – objeto de controvérsia, a exemplo do direito à vida.
Não é demais lembrar que dentre todas as minorias sexuais, os transgêneros, ao questionarem a divisão binária entre os sexos, são ordinariamente vítimas das mais explícitas e violentas demonstrações de preconceito, que não raro, lamentavelmente, chegam às raias da violência física.[34]
Dessa forma, o tema não pode e não deve ser abordado a partir de manifestação de opiniões ou de concepções pessoais, mediante o argumento de que a proteção dos direitos de pessoas transexuais possui “todo o arcabouço legal nacional, não havendo nenhum desamparo, pois há o Código Penal, a Legislação Penal Especial (…)”[35] e que a ampliação demasiada da Lei Maria da Penha implicaria no seu esvaziamento e desnaturação.
Há iniciativa legislativa de ampliação do alcance da norma para que, expressamente, seja consignada a possibilidade de mulheres transgênero e transexuais contarem com a proteção da Lei Maria da Penha. Trata-se do PLS nº 191/2017, de autoria do Senador Jorge Viana (PT/AL)[36], que propõe a alteração do art. 2º da Lei nº 11.340/2006 a fim de assegurar à mulher as oportunidades e facilidades para viver sem qualquer sujeição física ou psicológica, independentemente de sua identidade de gênero.
O PLS nº 191/2017 está “pronto para deliberação do plenário” desde 10/06/2019. O tema é polêmico: consta no site do Senado Federal considerável divisão de opiniões entre aqueles que concordam e discordam da proposta (7.416 senadores votaram “sim” e outros 4.330 votaram “não”)[37].
A despeito do trâmite do PLS nº 191/2017, o Poder Judiciário tem sido chamado a definir o alcance da Lei Maria da Penha às mulheres transgênero, a partir da Constituição Federal, tratados internacionais ratificados pelo Brasil[38] e demais fontes jurídicas. A jurisprudência majoritária e diversos autores[39] apontam o critério psicológico (como a pessoa se identifica) como o mais adequado. Ademais, não poderia a ventilada omissão da lei obstar o reconhecimento de garantias constitucionais.[40]
Nessa linha de entendimento, o FONAVID, por meio do Enunciado 46[41], fincou o dever de aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres transgênero, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de resignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do art. 5º, da Lei nº 11.340/2006.[42]
Como exemplo, cita-se a decisão proferida pela 9ª Câmara Criminal do TJSP, no julgamento do MS nº 2097361-61.2015.8.26.0000[43], que determinou aplicação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha em favor de uma mulher transexual ameaçada por seu ex-companheiro. Destacou a relatora que “a expressão ‘mulher’ contida na Lei Maria da Penha, refere-se tanto ao sexo feminino quanto ao gênero feminino. O primeiro diz respeito às características biológicas do ser humano, dentre as quais a impetrante não se enquadra, enquanto o segundo se refere à construção social de cada indivíduo, e aqui a impetrante pode ser considerada mulher”. Isto porque, “apesar de ser biologicamente do sexo masculino e não ter sido submetida à cirurgia de mudança de sexo, apresenta-se social e psicologicamente como mulher, com aparência e traços femininos”.
Relevante também é a abordagem do tema a partir da inovação legislativa trazida pela Lei nº 13.104/2015, que alterou o CP para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, nas hipóteses em que o que crime for praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (art. 121, inciso VI do CP).
O texto da referida qualificadora limitou ainda mais o sujeito passivo, ou seja, demarcou que a vítima poderia ser apenas do “sexo feminino”. Entretanto, da mesma forma que resta necessária a ampliação dos efeitos da Lei Maria da Penha à mulher transgênero, é inadmissível a exclusão da qualificadora em razão de a vítima ter sido identificada como homem ao nascer, e assim não se reconhecer.
O PL nº 292/2013[44], apresentado ao Senado Federal e que deu origem à qualificadora, abarcava a seguinte definição do feminicídio: “assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres” ou “assassinato relacionado a gênero que se refere a um crime de ódio contra as mulheres justificado socio culturalmente por uma história de dominação da mulher pelo homem e estimulada pela impunidade e indiferença da sociedade e do Estado”.[45] Todavia, a Câmara dos Deputados, ao aprovar o referido projeto de lei, alterou substancialmente a sua definição: houve a troca da expressão razões de gênero por razões da condição do sexo feminino.[46]
Ademais, “a expressão ‘por razões da condição de sexo feminino’ eliminou várias identidades de gênero perante essa figura típica”[47]. Isso nos leva a aplicar idêntico entendimento apontado anteriormente: o pensamento pautado no patriarcalismo permanece na legislação, uma vez que a condição de “sexo feminino” limita a identidade como algo biológico e não a partir da forma como a pessoa trans efetivamente se vê e deve ser protegida.
Correntes doutrinárias sustentam que a qualificadora do feminicídio incide quando o sujeito passivo for mulher, a partir do critério psicológico, ou seja, quando a pessoa se identificar com o sexo feminino, mesmo quando não tenha nascido com o sexo biológico.[48] De forma oposta, há juristas inclinados no sentido de que “somente as pessoas a quem o direito reconhece (civilmente) como mulheres podem ser sujeitos passivos do crime”[49]; ao passo que se sustenta a possibilidade de a mulher transexual ser vítima do crime de feminicídio “uma vez alterado (judicialmente) o seu designativo de sexo e nome”[50].
A inovação legislativa para inclusão do feminicídio ao CP é recente, mas a jurisprudência brasileira segue em uma construção positiva, inclinando-se no sentido de admitir a mulher transgênero como sujeito passivo do crime de feminicídio.
Esse foi o entendimento do TJDFT, ao manter a decisão de primeiro grau que pronunciou os réus com a aplicação da qualificadora.[51] No caso, a inclusão da qualificadora do feminicídio decorreu do fato de o crime ter sido praticado “por ódio à condição de transexual de Jéssica”, uma vez que, enquanto os acusados agrediam fisicamente a vítima, também diziam a ela que “era para virar homem”. Em consequência, a defesa impetrou habeas corpus[52] perante o C. STJ, pleiteando a exclusão da qualificadora em razão de a vítima ter sido designada homem ao nascer.
Por meio de decisão unânime proferida nos autos do HC nº 541.237/DF[53], o C. STJ decidiu que cabe ao Tribunal do Júri debater acerca da efetiva aplicação da qualificadora do feminicídio ao caso concreto, na hipótese de existir indicativo de prova e concatenada demonstração de sua possível ocorrência.
Há, portanto, uma função essencial no sentido de refinar a leitura do tipo penal e aplicar adequadamente a qualificadora do feminicídio. Propõe-se um juízo que busque identificar marcadores de gênero e aspectos constantes da violência contra a mulher como evidentes características de feminicídio.[54]
De igual modo, para a efetividade da Lei Maria da Penha, é imprescindível compreender a violência em si; ou seja, necessário entender de qual modo as questões de gênero moldam as relações e influenciam nas decisões judiciais.[55]
A relação de poder entre homens e mulheres demonstra que os papéis que lhes são impostos, ratificados pelo patriarcado, ensejam relações violentas e indicam que a prática de ações violentas não é fruto da natureza, mas sim do processo de socialização das pessoas.[56] Logo, uma vez que o cerne da discussão se enquadra no aspecto sociológico, não há razão para afastar a mulher transgênero desse contexto.
Conforme bem lançado pelo E. STF “a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la”[57].
Em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, aos preceitos democráticos que sustentam uma sociedade igualitária e livre de preconceitos, a Lei Maria da Penha e a qualificadora do feminicídio devem abarcar, sem qualquer dúvida, a proteção da vítima mulher transgênero, tal como ela efetivamente se vê e se insere na sociedade.
Leia artigo completo no ConJur
NOTAS
[1] BRASIL. STF. ADI 4.275, relator para o acórdão: Min. Edson Fachin, j. 01/03/2018, p. 07/03/2019.
[2] RODRIGUES, Caroline Peixoto. Violência contra a mulher: novos aspectos penais. Dissertação (Mestrado em Direito). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007, p. 14. In: FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei maria da penha: o processo penal no caminho da efetividade. São Paulo: Atlas, 2015, p. 51.
[3] FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei maria da penha: o processo penal no caminho da efetividade. São Paulo: Atlas, 2015, p. 57.
[4] GOMES, Mariângela Gama de Magalhães; FALAVIGNO, Chiavelli Facenda; MATA, Jéssica da (Orgs.). Questões de gênero: uma abordagem sob a ótica das ciências criminais. Belo Horizonte: D’plácido, 2018, p. 229.
[5] BRASIL. STJ, HC 541.237/DF (2019/0316671-1), Relator: Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, j. 15/12/2020, p. 18/12/2020.
[6] No julgamento, o STJ preconizou que “diante da hipótese de habeas corpus substitutivo de recurso próprio, a impetração sequer deveria ser conhecida. Porém, considerando as alegações expostas na inicial, razoável o processamento do feito para verificar a existência de eventual constrangimento ilegal.”.
[7] BRASIL. TJDFT. RESE 0001842-95.2018.8.07.0007, Relator: Des. Waldir Leôncio Lopes Júnior, 3ª Turma Criminal, j. 04/07/2019, p. 12/07/2019.
[8] MELLO, Adriana Ramos de. Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil. Rio de Janeiro: GZ, 2020, p. 180.
[9] MORAES, Thiago Mota de. Feminicídio: comentários sobre a Lei 13.104/2015. Disponível: <https://emporiododireito.com.br/leitura/feminicidio-comentarios-sobre-a-lei-13-104-2015>. Acesso em: 27 maio 2021.
[10] MORAES, Thiago Mota de. Feminicídio: comentários sobre a Lei 13.104/2015. Disponível: <https://emporiododireito.com.br/leitura/feminicidio-comentarios-sobre-a-lei-13-104-2015>. Acesso em: 27 maio 2021.
[11] SOUZA, Luciano Anderson de (coordenador); vários autores. Código penal comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 458.
[12] SOUZA, Luciano Anderson de (coordenador); vários autores. Código penal comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 458.
[13] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 292, de 2013. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/113728>. Acesso em: 1 jul. 2021.
[14] SOUZA, Luciano Anderson de (coordenador); vários autores. Código penal comentado. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 458.
[15] BRASIL. TJSP. MS nº 2097361-61.2015.8.26.0000, Relatora: Des. Ely Amioka, 9ª Câmara de Direito Criminal, j. 08/10/2015, p. 16/10/2015.
[16] ENUNCIADO 46: A lei Maria da Penha se aplica às mulheres trans, independentemente de alteração registral do nome e de cirurgia de redesignação sexual, sempre que configuradas as hipóteses do artigo 5º, da Lei 11.340/2006. (APROVADO no IX FONAVID – Natal). (ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. Enunciados. Disponível em: <https://www.amb.com.br/fonavid/enunciados.php>. Acesso em: 26 maio 2021.)
[17] ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. Enunciados. Disponível em: <https://www.amb.com.br/fonavid/enunciados.php>. Acesso em: 26 maio 2021.
[18] Nessa linha: Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
[19] BIANCHINI, Alice. Lei maria da penha: lei nº 11.340/2006: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, pp. 60-61.
[20] MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Lívia de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática. São Paulo: Revista dos tribunais, 2019, p. 152.
[21] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado n° 191, de 2017. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129598>. Acesso em: 26 maio 2021.
[22] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado nº 191, de 2017. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/129598>. Acesso em: 1 jun. 2021.
[23] GIMENES, Eron Veríssimo; ALFERES, Priscila Bianchini de Assunção. Lei Maria da Penha explicada. São Paulo: Edipro, 2020, pp. 40-41.
[24] DIAS, Rodrigo Bernardes. Estado, sexo e direito: reflexões acerca do processo histórico de reconhecimento dos direitos sexuais como direitos humanos fundamentais. São Paulo: SRS, 2015, p. 335.
[25] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html>. Acesso em: 08 jun. 2021.
[26] BRASIL. STF. Inteiro Teor do Acórdão – Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275/DF. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=749297200>. Acesso em: 26 maio 2021.
[27] CNJ. CNJ Serviço: Como fazer a troca de nome e gênero em cartórios. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/cnj-servico-como-fazer-a-troca-de-nome-e-genero-em-cartorios/>. Acesso em: 26 maio 2021.
[28] DIAS, Rodrigo Bernardes. Estado, sexo e direito: reflexões acerca do processo histórico de reconhecimento dos direitos sexuais como direitos humanos fundamentais. São Paulo: SRS, 2015, p. 335
[29] DIAS, Maria Berenice. A lei maria da penha: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos tribunais, 2012, pp. 61-62.
[30] DIAS, Maria Berenice. A lei maria da penha: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Revista dos tribunais, 2012, p. 62.
[31] MELLO, Adriana Ramos de; PAIVA, Lívia de Meira Lima. Lei Maria da Penha na prática. São Paulo: Revista dos tribunais, 2019, p. 151.
[32] BIANCHINI, Alice. Lei maria da penha: lei nº 11.340/2006: aspectos assistenciais, protetivos e criminais da violência de gênero. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 32.
[33] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (…) § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
[34] BRASIL. STF. Diversidade. Jurisprudência do STF e bibliografia temática. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoLegislacaoAnotada/anexo/diversidade.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[35] TRANSRESPECT VERSOS TRANSPHIBIA: WORLD WIDE. TMM Update Trans Day of Remembrance 2020. Disponível em: <https://transrespect.org/en/tmm-update-tdor-2020/>. Acesso em: 26 maio 2021.
[36] BRASIL. STF. ADPF 457. Rel. Min. Alexandre de Moraes, voto do min. Edson Fachin, j. 27/04/2020, p. 03/06/2020. In: BRASIL. STF. Diversidade. Jurisprudência do STF e bibliografia temática. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoLegislacaoAnotada/anexo/diversidade.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[37] BRASIL. STF. ADPF 457. Rel. Min. Alexandre de Moraes, voto do min. Edson Fachin, j. 27/04/2020, p. 03/06/2020. In: BRASIL. STF. Diversidade. Jurisprudência do STF e bibliografia temática. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoLegislacaoAnotada/anexo/diversidade.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[38] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório Anual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/sitios/informes/docs/POR/por_2017.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[39] BRASIL. STF. RE 845779/SC, rel. Min. Roberto Barroso, j. 13/11/2014, p. 10/03/2015. BRASIL. STF. Diversidade. Jurisprudência do STF e bibliografia temática. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoLegislacaoAnotada/anexo/diversidade.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[40] BRASIL. STF. RE 845779/SC, rel. Min. Roberto Barroso, j. 13/11/2014, p. 10/03/2015. In: BRASIL. STF. Diversidade. Jurisprudência do STF e bibliografia temática. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/publicacaoLegislacaoAnotada/anexo/diversidade.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[41] UNAIDS. OMS anuncia retirada dos transtornos de identidade de gênero de lista de saúde mental. Disponível em: <https://unaids.org.br/2018/06/oms-anuncia-retirada-dos-transtornos-de-identidade-de-genero-de-lista-de-saude-mental/>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[42] SOCIEDADE BRASILEIRA DE DERMATOLOGIA. OMS divulga nova Classificação Internacional de Doenças (CID-11). Disponível em: <https://www.sbd.org.br/noticias/oms-divulga-nova-classificacao-internacional-de-doencas-cid-11/>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[43] UNAIDS. OMS anuncia retirada dos transtornos de identidade de gênero de lista de saúde mental. Disponível em: <https://unaids.org.br/2018/06/oms-anuncia-retirada-dos-transtornos-de-identidade-de-genero-de-lista-de-saude-mental/>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[44] PEBMED. F64 – Transtornos da Identidade Sexual. Disponível em: <https://pebmed.com.br/cid10/f64-transtornos-da-identidade-sexual/#:~:text=CID10%20%2D%20F64%20%2D%20Transtornos%20da%20Identidade%20Sexual>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[45] AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM IV TR. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2002. In: ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela; LIONÇO, Tatiana. Transexualidade e saúde pública no Brasil. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/csc/a/SBvq6LKYBTWNR8TLNsFdKkj/?lang=pt#>. Acesso em: 10 jun. 2021.
[46] GORISCH, Patrícia Cristina Vasques de Souza. O reconhecimento dos direitos LGBT como direitos humanos. 2013., 101 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Santos, Santos, 2013, p. 95.
[47] HISTORY – FACTUAL ENTERTAINMENT BRAND. Stonewall Riots. Disponível em: <https://www.history.com/topics/gay-rights/the-stonewall-riots>. Acesso em: 08 jun. 2021.
[48] GORISCH, Patrícia Cristina Vasques de Souza. O reconhecimento dos direitos LGBT como direitos humanos. 2013., 101 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Santos, Santos, 2013, p. 14.
[49] HISTORY – FACTUAL ENTERTAINMENT BRAND. Stonewall Riots. Disponível em: <https://www.history.com/topics/gay-rights/the-stonewall-riots>. Acesso em: 08 jun. 2021.
[50] FALCIO, Alda; CAMACHO, Rosália. Em busca das mulheres perdidas: uma aproximação crítica à criminologia. In: CLADEM. Mulheres: vigiadas e castigadas. São Paulo: 1995, p. 39-74. In: MENDES, Soraia da Rosa. 226. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 87.
[51] SCOTT, Joan; DABAT, Christine Rufino; ÁVILA, Maria Betânia (tradução). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/185058/mod_resource/content/2/G%C3%AAnero-Joan%20Scott.pdf>. Acesso: 27 maio 2021.
[52] MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 86.
[53] MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 86.
[54] BRASIL. TJSP. RESE nº 1500028-93.2021.8.26.0312/SP, Relator: Des. Francisco Bruno, 10ª Câmara de Direito Criminal, j. 27/04/2021, p. 22/04/2021.
[55] Lei nº 11.340/2006, artigos 22 e seguintes.
[56] L, G e B: lésbicas, gays e bissexuais; (…) T: transgêneros, transexuais e travestis; (…) I: intersexuais; (…) Q, A, P: queer, assexual, pansexual. +: abriga outras possibilidades de orientação sexual e identidade de gênero que existam (…). (BRASILTURIS. DIVERSIFICANDO. Decifrando a sigla LGBTQIA+. Disponível em: <https://brasilturis.com.br/decifrando-a-sigla-lgbtqia/>. Acesso em: 21 jun. 2021.
[57] MENDES, Soraia da Rosa; SANTOS, Michelle Karen Batista. De vítima à sujeito da própria história: possibilidades de aplicação da justiça restaurativa no Brasil em casos de violência contra a mulher. In: VALOIS, Luiz Carlos; SANTANA, Selma; MATOS, Taysa; ESPIÑEIRA, Brunno (org.). Justiça Restaurativa. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 218. In: MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020, pp. 93-94.