A pandemia causada pelo novo coronavírus é considerada a mais grave crise sanitária dos últimos cem anos. Estudos preliminares sobre a doença apontam que cerca de 80% das pessoas infectadas são assintomáticas ou possuem sintomas leves e 20% demandam cuidados hospitalares. Desse grupo, 5% desenvolvem quadros mais graves, que reclamam cuidados de terapia intensiva. A elevada taxa de contágio, com a consequente necessidade de numerosas internações hospitalares, vem ocasionando o colapso dos sistemas de saúde pelo mundo. No Brasil, essa realidade já se evidencia em algumas cidades com a completa lotação de hospitais públicos.

O país tem uma particularidade com relação à saúde da população. A Constituição Federal anuncia, em seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo esse binômio pela implantação de políticas públicas e econômicas para esse fim. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada, o Sistema Único de Saúde-SUS (artigo 198). Ao mesmo tempo, a Constituição assegura no seu artigo 199 a livre iniciativa privada na assistência à saúde. Em complementação a essa organização dos serviços de saúde, a Constituição prevê expressamente que os atos administrativos de atenção à saúde são obrigação comum da União, Estados e Municípios (artigo 23) e esses mesmos entes federativos têm competência concorrente para legislar sobre saúde pública.

O arcabouço constitucional pátrio leva a um cenário de convivência entre o sistema de saúde público e o sistema de saúde privado nos três níveis de entes federativos. Na atual crise sanitária, apesar da relevância assumida pelo SUS na condição de garantidor do direito da população de acesso à saúde, também restou evidenciado que o sistema privado dispõe de um universo maior de recursos para enfrentar a doença, principalmente de leitos de Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), e outros equipamentos essenciais para o tratamento de casos mais graves. No setor privado há 4,9 leitos de UTI para cada 10 mil habitantes, e no SUS essa relação é de 1,4 leitos de UTI para cada 10 mil habitantes [1].

Nessa toada, a busca de recursos hospitalares pelo poder público se aprofunda. A requisição administrativa, mecanismo de intervenção do Estado na propriedade, foi contemplada no artigo 3º, inciso VII, da Lei 13.979/2020 como uma das medidas de enfrentamento da crise. O instituto tem previsão constitucional no inciso XXV do artigo 5º, e já contava com tratamento na legislação infraconstitucional, mais precisamente no artigo 15, inciso XIII, da Lei 8.080/1990, para o atendimento de necessidades coletivas decorrentes de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias.

A requisição administrativa não transfere ao poder público a propriedade do bem requisitado. Transfere o uso, pelo tempo que seja necessário, com a devolução posterior, caso o bem não tenha sido consumido. Pode ser de bens ou de serviços. Em tese, a requisição deve recair sobre bem ou serviço que esteja disponível, vale dizer, que não esteja sendo utilizado pelo particular para o fim a que se destina. Diversamente da desapropriação, não se exige prévia declaração de utilidade pública especificamente para o objeto da requisição. Declarada a situação de emergência de saúde pública, todos os insumos disponíveis e necessários ficam sujeitos à requisição. E não exige indenização prévia, embora essa possa ser prevista na legislação ordinária. Pelo Brasil, governadores e prefeitos editaram decretos prevendo a possibilidade de requisição de insumos, que vão de equipamentos de proteção individual e medicamentos a leitos de UTI. O Decreto nº 19.533 de 18 de março de 2020, do Estado da Bahia, prevê a requisição de EPI’s (Equipamentos de Proteção Individual), além de outros insumos para higienização. Seu artigo 3º determina que a indenização pela requisição será quantificada e paga ao particular nos termos do artigo 5º, inciso XXV, da CF/88, e do artigo 3º, inciso VII, da Lei 13.979/2020, ou seja, será posterior à requisição.

O Decreto nº 48.809 de 14 de março de 2020, do Estado de Pernambuco, prevê a expressa requisição de hospitais, clínicas e laboratórios privados, além de profissionais de saúde, limitado o período à emergência de saúde pública. Como estabelece a Constituição e legislação federal, a justa indenização é garantida a posteriori.

Em outra ponta, há decretos que preveem uma estimativa para a indenização devida ao particular ou até mesmo um valor previamente fixado. O Decreto nº 69.530 de 18 de março de 2020, do Estado de Alagoas, estipula que a indenização se dará posteriormente à utilização do bem, nos limites previstos na “tabela do SUS”, ou seja, a indenização se dará com base nos valores usualmente praticados pelo Estado nas contratações com particulares. O Decreto 4.315 de 21 de março de 2020, do Estado do Paraná, em outra ponta, afirma que a tabela do SUS, quando for o caso, servirá de parâmetro para a fixação do valor das indenizações.

Extrai-se desse cenário que são diversas as formas e condições de requisição utilizadas por estados e municípios. Isso porque a legislação infraconstitucional muitas vezes se restringe a enunciar o instituto da requisição administrativa, sem regulamentá-lo com densidade, como ocorreu com as Leis 8.080/1990 e 13.979/2020, propiciando aos entes da federação alguma liberdade de atuação.

Corolário dessa situação é o Projeto de Lei 2.324/2020, de autoria do senador Rogério Carvalho e outros, ora em trâmite perante o Congresso Nacional. Referida propositura objetiva alterar a Lei 13.979/2020 e acrescentar nove parágrafos no seu artigo 3º, regulamentando a utilização compulsória de leitos de propriedade privada. Apesar de o texto da proposta inicial não falar em requisição administrativa, na justificativa do projeto apresenta-se, como fundamento da utilização compulsória, o instituto previsto no artigo 5º, inciso XXV, da Constituição e no artigo 15, inciso XIII, da Lei 8.080/1990.

Há aspectos importantes do projeto para garantir a racionalidade na hipótese de utilização, pelo Poder Público, de bens e serviços privados no contexto de pandemia.

Primeiro ponto é a imposição da obrigação a entidades privadas de saúde de fornecerem informações sobre a quantidade de leitos em suas dependências, bem como respectiva ocupação, além da quantidade de ventiladores pulmonares. Também deverá constar informação sobre leitos e equipamentosque já estão sendo usados para o tratamento da Covid-19. Esse panorama é essencial para que o administrador público possa decidir acerca da requisição e de suas proporções.

Na proposta inicial, havia previsão de utilização de leitos disponíveis para tratamento de pacientes acometidos de Síndrome Respiratória Aguda Grave-SRAG ou com suspeita ou diagnóstico de Covid-19. O dispositivo foi alterado para estabelecer a possibilidade dessa utilização apenas quando a taxa de ocupação for inferior a 85% (oitenta ecinco por cento).

O projeto inicial previa que a utilização compulsória dos leitos não impedia a autoridade sanitária de negociar a contratação emergencial. Ou seja, a solução consensual não deveria ser excluída da iniciativa do gestor. Reforçando a ideia de subsidiariedade da requisição compulsória, o texto foi alterado por meio de emenda para estabelecer a obrigatoriedade de prévia realização de chamamento público para fins de contratação emergencial, devendo constar do respectivo edital, no mínimo,quantidade e prazo de utilização dos leitos e valores de referência, baseados em cotação prévia de preços de mercado.

Outro ponto importante do projeto de lei é que caberá aos gestores estaduais, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), estabelecer, com base na demanda e necessidades dos entes federativos, a distribuição de leitos públicos e a utilização compulsória dos leitos privados disponíveis. Dessa forma, decisões relativas à distribuição de leitos públicos e utilização compulsória de leitos privados cabe à CIB, e não ao chefe do poder executivo estadual ou municipal, ou aos seus secretários de saúde.

A CIB, prevista no artigo 14-A da Lei 8.080/1990, juntamente com a Comissão Intergestores Tripartite-CIT, é um foro de negociação e pactuação entre gestores, quanto a aspectos operacionais do SUS. É uma comissão bipartite, composta paritariamente por representantes estaduais e municipais. Assegura-se, assim, a melhor utilização dos leitos públicos e a utilização racional dos leitos privados, por meio de uma gestão integrada, garantindo que Estados e Municípios decidam em conjunto sobre a necessidade de utilização compulsória dos leitos privados.

Outro ponto que merece destaque é a determinação no sentido de que a justa indenização terá como referência valores apontados em ato do Ministério da Saúde ou em determinação da CIB, devendo haver prévia cotação de preços no mercado, tal qual a determinação para o chamamento público antecedente.

Nos termos da propositura, a União poderá destinar recursos para o financiamento dos custos dessa utilização compulsória ou contratação emergencial, por meio de transferência obrigatória de recursos do Fundo Nacional de Saúde aos fundos estaduais ou municipais, sob a modalidade de recursos adicionais ao mínimo obrigatório previsto na Constituição. A proposição inicial previa a obrigatoriedade dessa destinação dos recursos, mas o texto foi alterado ante a ausência de estimativa do impacto orçamentário.

Um ponto que pode gerar controvérsia na proposição legislativa que seguiu para Câmara dos Deputados para votação é a inclusão do §21, no artigo 3º, da Lei 13.979/2020. O projeto inicial previu o uso público de leitos privados, com fundamento na requisição administrativa, conforme previsão constitucional e legal [2]. Entretanto, houve apresentação de emenda [3], acatada parcialmente na forma de subemenda, para incluir o §21 no artigo 3º da Lei 13.979/2020 [4]. Entendeu-se que, como a requisição administrativa já está disciplinada na legislação, nos termos da Lei 8.080/1990 e da própria Lei 13.979/2020, a utilização compulsória seria uma inovação. O relator do projeto, senador Humberto Costa, sustentou que a proposta visa dar maior segurança ao gestor público, evitando que os leitos privados sejam utilizados de maneira desordenada.

Nesse sentido, a proposição traz três formas diferenciadas de utilização dos leitos privados pelo setor público:

“a) contratação emergencial; b) utilização compulsória dos leitos, na qual os leitos ficam sujeitos à regulação pública, mas seguem sob administração do setor privado; c) requisição administrativa, nos termos da Lei nº 8080/1990 e Lei nº 13.979/2019, na qual os leitos privados passam a ser administrados pelo setor público.”

A utilização compulsória prevista no PL 2324, sob a ótica dos seus autores, não se confunde com a requisição administrativa, mas trataria de um novo instituto, delineado na proposição para o enfrentamento da pandemia.

A opção legislativa da utilização compulsória possui, todavia, características que são próprias da requisição administrativa. Pode-se afirmar, inclusive, que a utilização compulsória é modalidade da requisição administrativa. É um ato unilateral da Administração Pública, sem a necessidade de concordância do particular. Ao contrário, a sua inobservância pelo particular será considerada infração sanitária, nos termos da Lei 6.437/1977. É ato discricionário, que dependerá de conveniência e oportunidade, mas que deverá ser deliberado e decidido entre os gestores da CIB. Além disso, é ato autoexecutório, bastando a sua comunicação ao hospital, conforme a disciplina determinada pela CIB.

O fato de o referido projeto prever a necessidade de chamamento público, para contratação emergencial como medida anterior à utilização compulsória dos leitos, não é elemento diferenciador desta em relação à requisição administrativa. Essa obrigatoriedade da prévia tentativa de solução consensual, não é incompatível com a requisição administrativa, mesmo diante da necessidade de rápida obtenção de recursos para enfrentar o perigo público iminente.

Isto porque é recorrente na doutrina o entendimento de que a requisição administrativa deve ser utilizada como último recurso, por acarretar a intervenção do Estado na propriedade privada, direito fundamental garantido no artigo 5°, inciso XXII, da CF/88. Ou seja, “a requisição de bens privados somente é admissível quando for a única alternativa para satisfazer as necessidades coletivas” [5]. Destaque-se que essa previsão de tentativa de contratação emergencial prévia à requisição consta, inclusive, do Decreto nº 59.396, de 05 de maio de 2020 do Município de São Paulo [6].

Sob o enfoque da justa indenização, o projeto não estabelece o momento da sua efetivação, diferentemente da requisição administrativa que conta com expressa previsão de indenização a posteriori. Embora haja, na propositura, previsão de parâmetros para a fixação de valores, não há estipulação quanto ao momento do pagamento. Entretanto, a ausência dessa previsão não parece ser suficiente para descaracterizar o instituto da requisição administrativa, pois o texto fala em justa indenização e, mesmo que se decida pelo pagamento prévio, eventuais danos sofridos pelo particular que ultrapassem os limites e valores estabelecidos inicialmente, poderão, em princípio, ser demandados do Poder Público.

O PL 2324 de 2020, com o texto aprovado pelo Senado Federal, poderia sugerir a criação de um novo instituto, no contexto da pandemia causada pelo novo coronavírus. Como implicação, teríamos a hipótese de criação de uma nova forma de intervenção do Poder Público na propriedade privada por norma infraconstitucional, ocasionando inúmeras discussões acerca da sua constitucionalidade.

A opção legislativa com o texto que se apresenta até o momento, pode ser interpretada como criação de um novo instituto jurídico, como mais uma medida de enfrentamento à crise sanitária. No entanto, é de se notar que a utilização compulsória de leitos privados possui características essencialmente coincidentes com a requisição administrativa e, por esse motivo, em uma primeira análise, parece estar inserida na previsão do artigo 5º, inciso XXII, da Constituição Federal. Ou seja, é possível e parece razoável sustentar que a utilização compulsória é modalidade da requisição administrativa, em que se requisita o uso do bem ou serviço, mas não a disponibilidade para operá-lo diretamente. Resta-nos aguardar o tratamento que será dado pela Câmara dos Deputados ao projeto de lei.


[1] CRUZ, Isabela. “Público e Privado: a disputa por leitos de UTI na pandemia”. Nexo Jornal, 06 de maio 2020. Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/05/06/P%C3%BAblico-e-privado-a-disputa-por-leitos-de-UTI-na-pandemia>. Acesso em 13/05/2020.

[2] “O uso público, de modo compulsório, de leitos privados disponíveis, mediante justa indenização, encontra fundamento na Constituição, artigo5º, XXV e no artigo15, XIII, da Lei n. 8.080, de 1990. Por isso a proposição ora apresentada pretende alterar a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para prever que os leitos privados disponíveis, de qualquer espécie, poderão ser utilizados de modo compulsório pelos entes federativos para a internação de pacientes acometidos de Síndrome Aguda Respiratória Grave ou com suspeita ou diagnóstico de Covid-19. O projeto também prevê que o uso compulsório dos leitos não exclui a possibilidade de haver contratação entre o Poder Público e o setor privado.”

[3] Senador Roberto Rocha propôs emenda afirmando não se tratar de “utilização compulsória”, mas sim de requisição de leitos. Isso porque não é a utilização que é compulsória, mas sim o dever de o particular disponibilizar os leitos que foram requisitados.

[4] “§ 21. Os leitos privados de Unidade de Terapia Intensiva de que trata o § 14, de qualquer espécie, poderão ser requisitados pelos entes federativos para a internação de pacientes acometidos de Síndrome Respiratória Aguda Grave ou com suspeita ou diagnóstico de Covid-19, nos termos do inciso VII do artigo3º desta Lei, e do inciso XIII do artigo15 da Lei 8.080, de19 de setembro de 1990.

[5] JUSTEN FILHO, Marçal. A epidemia da requisição administrativa e seus efeitos destruidores. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.]-Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle.

[6] Artigo 12. O Secretário Municipal da Saúde poderá efetuar requisição de leitos ociosos regularmente instalados na rede particular de saúde enquanto durar a pandemia de Covid-19, a fim de maximizar o atendimento egarantir tratamento igualitário, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa.
Parágrafo único. Previamente à requisição de leitos deverá ser tentada forma consensual para sua utilização pelo Poder Público

Artigo publicado no Consultor Jurídico.

Tags: , , , , ,