Por Cecilia Mello e Júlia Dias Jacintho

Problemas relativos ao equilíbrio de direitos e garantias estabelecidos pela Lei 13.431/2017, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, onde, de um lado estão as vítimas impúberes e vulneráveis e, do outro, os acusados também sujeito de direitos, nos trazem a reflexão sobre a existência de ferramentas capazes de proporcionar um equilíbrio entre as referidas garantias. E afinal, quais são elas?

A escola é uma peça fundamental na rede de proteção e no enfrentamento da violência sexual de menores. E, a partir disso, é patente a necessidade de capacitação de profissionais com expertise para identificar sinais de que a criança ou adolescente está em situação de violência.

Além de a escola ser primordial na detecção desses casos, é um espaço onde as crianças e adolescentes “podem contatar pessoas capacitadas e preparadas para auxiliar na denúncia e no enfrentamento da violência.”. Dessa forma, é necessário que os profissionais de educação estejam fortalecidos “para lidar com situações e assuntos – na maioria das vezes, dolorosos, constrangedores e, em certos casos, ameaçadores – que, por muito tempo, foram silenciados e negligenciados pela sociedade.”

É irrefutável a importância do papel da educação na vida e na formação de crianças e adolescentes, especialmente porque casos de violência também estão integrados no bojo familiar. Deste modo, o ambiente escolar propicia um local seguro para que as crianças relatem a vivência de uma situação de constrangimento físico e/ou moral.

A integração entre instituições – sejam elas governamentais, não governamentais ou jurídicas – é essencial para a composição de uma rede de proteção ampla, visando o trabalho cooperativo. Soma-se a isso, a importância da difusão da discussão, através da mídia, a fim de fomentar o debate na sociedade, ampliar a rede de proteção infantil, como também abrir o necessário diálogo entre os profissionais de educação com pais, mães e/ou tutores.

Sob o aspecto normativo, tem-se que a Lei nº 13.431/2017 não esgota as respostas aos casos de violência praticadas contra crianças, contudo, há a previsão de procedimento específico para a realização da oitiva das vítimas ou testemunhas de crimes sexuais, através da escuta especializada e do depoimento especial.

Como visto, o depoimento especial tem por objetivo o levantamento de informações acerca da ocorrência do delito contra o menor impúbere, de modo a demonstrar a materialidade delitiva e a autoria. Dessa forma, o artigo 11 prevê que a oitiva da vítima/testemunha será realizada, uma única vez, salvo quando justificada a imprescindibilidade da tomada de novo depoimento e se houver anuência da vítima e/ou de seu representante legal.

A previsão de que o depoimento especial seja realizado somente uma vez se dá em razão da preocupação em se evitar o processo de revitimização vivenciado quando do relato da violência sofrida.

Da mesma forma, a fim de evitar a vitimização secundária, a Lei nº 13.431/2017 determina que o depoimento seja intermediado por profissionais especializados, em ambiente acolhedor, de modo a assegurar a livre narrativa sobre a situação vivenciada.

Vale ressaltar as diversas dificuldades de implementação de locais apropriados e acolhedores para a realização do depoimento especial, principalmente, tendo como perspectiva que o Brasil é um país vasto e plural em que são identificadas distintas dinâmicas de desigualdades.

Dessa forma, torna-se ainda mais desafiadora a adoção de tais mecanismos para assegurar a proteção das vítimas menores, bem como para evitar a ocorrência de erros judiciais relacionados, por vezes, a falsas memórias.

Mesmo se utilizando do depoimento especial, os Conselhos Federais de Serviço Social e Psicologia criticam a realização do depoimento especial, isso, em razão da instrumentalização dos profissionais que servem como meio de obtenção de prova.

Além da questão acima, muitos juristas desaprovam a realização do depoimento especial, tendo em vista a existência e a possibilidade de utilização de outros meios de obtenção de provas, como, por exemplo, a elaboração de laudos e perícias capazes de alcançar melhores resultados. Nessa linha Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa consignam, no artigo Depoimento Especial, que é antiético e pode levar a erros judiciais, que:

“Os laudos são produzidos com respeito à vítima, no seu tempo, conforme as possibilidades e jamais em depoimentos gravados expressamente com essa finalidade. Ouvir vítimas não se confunde com inquirir. Duvidamos que se as ouça, porque, no fundo, servem apenas de meio de prova.”

Os argumentos desfavoráveis são diversos e sinalizam para o incentivo a realização da escuta especializada em detrimento do depoimento especial. Isso, porque ao invés de os profissionais da área de saúde serem utilizados como “instrumentos” para a inquirição de crianças e adolescentes vítimas/testemunhas de crimes sexuais, incentivar-se-ia o “aprimoramento das questões afetas às perícias psicológicas decorrentes de escutas qualificadas.”

Assim, no que tange à persecução penal, o Direito Processual Penal deve ser visto e utilizado como uma ferramenta para garantir e preservar os direitos de crianças e adolescentes, como também os relativos aos acusados. Precisamente nas palavras de Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa: “Vítimas devem ser garantidas pelo Estado e o único mecanismo democrático para tanto é o processo penal”.

Não obstante as questões controvertidas acima, sobretudo em relação ao depoimento especial previsto na Lei nº 13.431/2017, é certo que o Estado deve adotar, em diferentes âmbitos, formas para combater a violência sexual contra crianças e adolescentes, considerando-se as distintas dinâmicas de desigualdade e vulnerabilidade sociais, bem como a partir da ótica de cada organização dos núcleos familiares.

Publicado em O Estado de São Paulo.

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