Artigo publicado originalmente na Revista Direito e Medicina, Volume VI – Maio/Agosto de 2020.

Resumo
O trabalho tem como objetivo discutir a utilização do instituto da requisição administrativa em meio a pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-COV-2). A crise sanitária escancarou a desigualdade existente entre os sistemas de saúde público e privado. O colapso do primeiro pode levar a utilização da requisição administrativa para viabilizar o direito à saúde da população. Em um primeiro momento o instituto é conceituado e são apresentadas questões relacionadas a sua aplicação. Em seguida, apresenta-se o panorama de como as requisições têm sido realizadas pelos entes federativos em meio à crise do COVID-19 e as implicações de se estabelecer indenizações prévias. Trata-se também da possibilidade de instituição de fila única por meio da requisição. Por fim, discute-se eventuais consequências da responsabilidade civil do Estado.

Palavras-chave: Requisição administrativa, COVID-19, fila única, indenização, responsabilidade civil.



1. Introdução

A pandemia causada pelo Sars-Cov-2 evidenciou ao mundo a estrutura dos sistemas de saúde da quase totalidade dos países e as respectivas políticas públicas adotadas nesse setor, permanecendo de conhecimento mais restrito ou duvidoso apenas as informações advindas de países não democráticos ou tão ineficientes que os dados não se revestem de mínima credibilidade. A pandemia tem demonstrado um poder devastador frente à saúde de milhões de pessoas ao redor do mundo, demandando internações prolongadas para casos graves. Os sistemas de saúde de vários países colapsaram. Ao mesmo tempo, a recessão econômica se avizinha e os danos sociais se apresentam numa realidade particularmente perversa para países pobres e em desenvolvimento.

A situação de calamidade pública escancarou desigualdades sociais e os problemas foram colocados em destaque pela crise. Nessa emergência sanitária, o Estado é chamado para garantir as vidas e preservar um mínimo de dignidade para os cidadãos.

Estudos apontam que 80% dos casos podem ser assintomáticos, 20% podem requerer cuidados mais complexos e, desses, 5% exigem cuidados intensivos em unidades de saúde com oferta de atendimento de alta complexidade1. O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde projetou que, em um cenário de 20% da população infectada e, desses, 5% necessitando cuidados de UTI por 5 dias, 294 das 436 regiões de saúde do país chegariam a sua capacidade máxima2.

No Brasil, por expressa disposição constitucional3, o sistema público de saúde se consubstancia em dever do Estado, é universal e está aberto para quem dele necessitar, brasileiros e estrangeiros residentes no país

O Texto Constitucional estabelece como seus princípios: a universalidade, pois todo cidadão tem direito a usar os serviços de saúde; a equidade, os serviços devem ser ofertados com justiça social; e a integralidade, o atendimento deve compreender a prevenção de doenças, a promoção da saúde, a cura e a reabilitação4.

O Sistema Único de Saúde-SUS tem o seu funcionamento de forma regionalizada e hierarquizada, sob as diretrizes de descentralização, com direção única em cada ente; integralidade do atendimento, dando prioridade a ações preventivas; e a participação comunidade. O art. 198, §1º, da Constituição Federal deixa clara a obrigação de financiamento do sistema por todos os entes federados.

Apesar de a Constituição ter criado um sistema único e público, no seu art. 199 estabelece que a assistência à saúde pela iniciativa privada é livre. Convivem no Brasil o sistema público, que tem como potenciais usuários todos aqueles que residem no país, com um sistema privado, de uso daqueles que podem pagar ou de segurados de planos de saúde5. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar- ANS, em março de 2020, 47.107.809 (quarenta e sete milhões, cento e sete mil, oitocentos e nove) pessoas eram usuárias de planos privados de assistência médica, ou seja, 24,2% da população brasileira6. Em outro giro, significa dizer que mais de 75% da população é alcançada pela atuação do Sistema Único de Saúde- SUS.

Não obstante a apontada concentração de atendimento populacional no Sistema Único de Saúde -SUS, fato é que a dinâmica de gestão desse sistema não logrou atingir um patamar suficientemente satisfatório para fazer frente ao atendimento das necessidades impostas pela emergência de saúde pública atualmente instaurada. Embora situação similar, em maior ou menor proporção, esteja ocorrendo em inúmeros sistemas de saúde mundo afora, especificamente no Brasil nos deparamos com o fato de o setor privado de saúde dispor de maior concentração de recursos hospitalares necessários ao combate da doença. Em razão dos problemas respiratórios causados pela a Covid-19, a utilização de respiradores e leitos de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) é essencial para o tratamento dos casos mais graves. Enquanto no setor privado há 4,9 leitos de UTI para cada 10.000 habitantes, no SUS essa relação é de 1,4 leitos de UTI para cada 10.000 habitantes7.

Os dispositivos do Estado Democrático de Direito para combater a crise são colocados à prova. Há um grande questionamento se as ferramentas previstas para o momento de anormalidade serão suficientes para debelar a crise. Com a atuação dos entes públicos, a doutrina administrativista tem servido de respaldo para lidar com os casos concretos, mas há diversas situações que não eram sequer imaginadas até a pandemia se instalar.

Nesse contexto, procura-se no direito vigente os mecanismos e instrumentos que se adaptem à excepcionalidade e sejam suficientes para dar respostas à crise. Dentre eles, desponta a requisição administrativa, instituto jurídico originário do direito romano, e que no ordenamento jurídico brasileiro deve ter utilização em contextos peculiares.

O presente artigo tem por objetivo apresentar as linhas gerais do instituto, bem como analisar a sua utilização como um meio para garantir o direito à saúde no atual estado de emergência.

2. Requisição administrativa: conceito, previsão constitucional e legal

A requisição administrativa é uma das formas de intervenção do Estado na propriedade. Apesar de a propriedade ser um direito fundamental, tem as suas limitações, que estão fundadas especialmente na supremacia do interesse público sobre o particular e no princípio da função social da propriedade. Para entender a possibilidade de sua restrição é importante fazer uma breve conceituação do direito de propriedade.

Diferente de outros direitos que são inerentes à natureza humana, como vida, liberdade, saúde, a propriedade é uma instituição criada e conformada pela convivência social. Nesse sentido, o direito da propriedade por si só não tem qualquer sentido, sendo o seu conceito e alcance delimitados pelo legislador, tanto constitucional como infraconstitucional 8.

O direito à propriedade é tratado em diversos momentos na Constituição Federal de 1988- CF/88. No artigo 5º, os incisos XXII a XXXI contemplam o direito à sucessão, o direito autoral e o direito de propriedade imaterial. Nesses dispositivos há a conformação do direito de propriedade, além de suas garantias. Ao mesmo tempo, há restrições a esse direito, estabelecendo a sua estrutura constitucional.

Pode-se destacar que um dos principais limitadores da propriedade privada estabelecido na Constituição é a previsão de que esse direito deve atender a sua função social. O conceito de propriedade vem evoluindo ao longo dos tempos, principalmente em razão de uma mudança nas obrigações do próprio Estado. No século XIX, predominava a doutrina do laissez faire, assegurando aos indivíduos grande liberdade. No entanto, no século XX, com o surgimento do Estado do Bem Estar Social, incorpora-se o caráter intervencionista do Estado na medida da sua necessidade para a garantia de serviços sociais.9. A propriedade deixa de ser absoluta e passa a se conformar com os anseios de um Estado que deve buscar o equilíbrio social.

Observa-se, nessa linha, que o art. 5º, inciso XXII, do texto constitucional, reconhece o direito à propriedade, mas logo em seguida, no inciso XXIII, informa que a propriedade deve atender à sua função social.

Vale também destacar que o art. 170 da Constituição Federal estabelece os princípios da ordem econômica, onde a livre concorrência, a propriedade privada, a função social da propriedade privada, a defesa do meio ambiente e do consumidor devem ser acomodados e ponderados. O inciso II do art. 170, aponta a propriedade como princípio da atividade econômica e o inciso III, do mesmo dispositivo, a função social da propriedade, também na condição de princípio a ser observado. O texto constitucional deixa claro que é necessário buscar o equilíbrio entre a função social e os demais princípios direcionadores da ordem econômica.

Assim, não é possível falar-se em propriedade privada sem vinculá-la à função social. No magistério de Irene Nohara:

“Atualmente, à noção de autonomia privada, cujos corolários específicos no direito de propriedade implicam os tradicionais direitos de usar, gozar e dispor de uma coisa, de forma ilimitada, contrapõe-se a função social da propriedade, segundo a qual o direito de propriedade deve ser condicionado ao bem-estar social.

Ademais, a instituição do Estado Social de Direito legou uma atuação mais positiva do Estado, ou seja, foi exigida maior intervenção em variadas esferas para a realização da justiça social.”10

Nesse sentido, a intervenção do Estado na propriedade tem seu alicerce especialmente na necessidade, estabelecida pelo texto constitucional, de que o direito fundamental tenha limites, sendo um deles a supremacia do interesse público sobre o particular, da qual decorre a função social da propriedade.

Pode-se dizer que a requisição administrativa, como forma de intervenção do Estado na propriedade privada, tem seu principal fundamento justamente na função social da propriedade, visando sempre atender ao interesse público. Não há lugar na ordem constitucional brasileira para a propriedade privada como um fim em si mesma, absoluta e sem qualquer conexão com a realidade social. A Constituição previu no art. 5º, inciso XXV, a requisição administrativa11. Há, ainda, como hipóteses de limitação da propriedade, as previstas no art. 136, §1º, inciso II12, e no art. 139, inciso VII13, mas que apenas podem ser utilizadas para a defesa das instituições democráticas quando da decretação do estado defesa e sítio14.

José dos Santos Carvalho Filho conceitua o instituto como “a modalidade de intervenção estatal através da qual o Estado utiliza bens móveis, imóveis e serviços particulares em situação de perigo público iminente.”15

Assim, a utilização do instituto deve se dar em situações extremas, como o próprio dispositivo constitucional anuncia, de iminente perigo público, que pode ser definido como “qualquer acontecimento provocado por ações humanas ou eventos da natureza que ocasionem grave risco para a coletividade, colocando em xeque a vida, a liberdade, a igualdade, a saúde, a segurança ou a propriedade das pessoas envolvidas.”16

A situação deve ser de excepcionalidade, exigindo a atuação mais incisiva do Poder Público. Ao mesmo tempo, deve atingir a esfera pública, a coletividade de uma certa região. A necessidade de atendimento ao interesse público deve estar caracterizada.

A medida se materializa por meio de ato administrativo unilateral e autoexecutório da autoridade competente. Esta deve ser entendida como a autoridade com poderes para tanto, que pode ser da Administração Direta ou Indireta, e até dos Poderes Legislativo e Judiciário desde que no exercício de sua função administrativa atípica.

A Constituição também estabelece que deve haver indenização caso o uso da propriedade tenha causado dano ao particular. O prejuízo, dada a situação de emergência, deve ser aferido a posteori, cabendo ao proprietário comprová-lo, devendo ser garantido procedimento para tal.

A competência para legislar sobre requisições administrativas é exclusiva da União, conforme estabelece o art. 22, inciso III, da Constituição Federal17. No entanto, a competência administrativa para adotar a medida cabe a todos entes federados.

O Decreto-Lei nº 4.812 de 08.10.1942, que regulamenta as requisições civis e militares, foi recepcionado pela Constituição de 1988 e permanece em vigor. O Decreto-Lei nº 2 de 14.11.1966, trata de requisições administrativas para abastecimento da população18. O Código Civil, no artigo 1.228, §3º19, prevê também o instituto, deixando clara a limitação do direito à propriedade pela sua função social.

Interessante notar que a Lei nº 8.080/90, Lei Orgânica da Saúde, que regulamenta o Sistema Único de Saúde-SUS, prevê expressamente a requisição administrativa, possibilitando a utilização de bens e serviços de pessoas naturais ou jurídicas, em situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, garantida a justa indenização20.

No contexto da pandemia do novo coronavírus, foi promulgada a Lei 13.979/2020, estabelecendo medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional. Esta norma, no art. 3º, inciso III21, prevê a possibilidade da requisição administrativa na crise, reforçando e repetindo o disposto na Lei 8.080/90 sobre a utilização do instituto em caso de epidemias.

A partir do delineamento constitucional, a legislação previu diversas hipóteses de aplicação do instituto, sendo claramente uma opção para o enfretamento de situações como a que se apresenta com a pandemia atual.

2.1. Requisição administrativa de bens públicos

Apresentados os requisitos do instituto, vale destacar divergência presente na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade de haver requisição de bens públicos. Conforme destaca Marcos Antônio Praxedes de Moraes Filho, há quem defenda uma interpretação ampliada do conceito, em contradição com aqueles que defendem uma interpretação restritiva:

“Segundo a corrente majoritária, liderada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, responsável por uma interpretação restritiva do texto, somente o particular, pessoa física ou jurídica, poderá sofrer uma limitação em sua propriedade privada (2013, p. 144). Este raciocínio utiliza tão somente a leitura do texto constitucional, analisando isoladamente as características essenciais da requisição administrativa elencadas pelo legislador originário, sem levar em conta as especificidades das legislações alienígenas. Segundo a corrente minoritária, liderada por Celso Antônio Bandeira de Mello, responsável por uma interpretação ampliativa da norma, tanto o particular, pessoa física ou jurídica, quanto o poder público poderão sofrer uma limitação em sua propriedade (2010, p. 906). Este raciocínio seria viável desde que a terminologia hipotética “de alguém” pudesse ser empregada em substituição à expressão constitucional “particular”, englobando, assim, todos os bens privados e públicos, como objetos de requisição administrativa, como sugere o art. 15 da Lei 8.080/90.”

A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal no Mandado de Segurança 25.295-DF, impetrado pelo Município do Rio de Janeiro em 2005 e julgado em 2007, que teve como Relator o Ministro Joaquim Barbosa22. No caso, a União, por meio do Decreto 5.392 de 10 de março de 2005, que declarou estado de calamidade pública no setor hospitalar do Sistema Único de Saúde do Rio de Janeiro, requisitou com fundamento no art. 15, inciso XIII, da Lei 8.080/1990, bens, serviços e servidores de hospitais pertencentes ao impetrante.

A ordem foi concedida em razão da ausência de motivação do ato, por vício de finalidade, ante a ausência de previsão da vigência temporal da medida, bem como pelo fato de os bens já estarem sendo usados para atendimento de saúde pública. A questão da possibilidade de requisição administrativa de bens públicos, apesar de não ter sido o fundamento da decisão, foi amplamente discutida.

O Ministro Relator Joaquim Barbosa externou seu entendimento pela possibilidade dessa requisição, afirmando que o regime de proteção à propriedade privada não se estende à propriedade pública, principalmente quando se trata de restaurar a normalidade do serviço público de saúde. Ou seja, se é possível a restrição da propriedade privada para atender ao interesse público, com mais razão caberia a restrição de bens públicos para esse fim.

No entanto, houve discordância dessa posição. O Ministro Carlos Britto entendeu que a requisição de bens municipais, tal como prevista no decreto, espelhava uma intervenção disfarçada da União em Município da federação, não sendo possível intervenção direta da União em um Município, a não ser que este esteja situado em um território. Ademais, asseverou a impossibilidade de requisição de bens públicos fora do estado de defesa ou de sítio. A Ministra Ellen Gracie destacou em seu voto a impossibilidade de requisição de bens públicos pela clara dicção do art. 5º, inciso XXV, da CF, que se direciona exclusivamente aos bens particulares, no que foi acompanhada pelos Ministros Sepúlveda Pertence e Celso de Mello.

Interessante posição foi a adotada pelo Ministro Cezar Peluso que, em outra ponta, admitiu a possibilidade de requisição de bem público, porém, no caso concreto, não vislumbrou fundamento para a adoção da medida. Os bens requisitados, hospitais municipais, já estavam sendo utilizados no atendimento à saúde pública no município do Rio de Janeiro. Assim, a requisição realizada pela União apenas retirava do Município o poder de administrar seus próprios bens, resultando, sob essa ótica, intervenção indevida no ente.

No mesmo ano de 2005, foi proposta pelo Partido da Frente Liberal- PFL, atualmente Democratas, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.454, Relator Ministro Dias Toffoli, requerendo a declaração de inconstitucionalidade parcial sem redução do texto do art. 15, inciso XIII, da Lei 8.080/90, para afastar interpretação que permita a requisição de bens e serviços públicos. Porém, até maio de 2020, a ação ainda não havia sido julgada.

No atual contexto de emergência de saúde pública, foi proposta pelo Estado do Maranhão, em face da União e da empresa Intermed Equipamento Médico Hospitalar Ltda, a Ação Cível Originária nº 3.385, objetivando que a União se abstivesse de requisitar e se apossar de ventiladores pulmonares previamente adquiridos, da Intermed, pelo estado autor. O Ministro Relator Celso de Mello, invocando as razões esposadas no MS 25.295-DF, concedeu a tutela liminar por entender caracterizada a indevida intervenção da União na autonomia do Estado do Maranhão, haja vista que a requisição tinha por objetivo fazer frente a atual pandemia, razão que também lastreou a aquisição dos equipamentos pelo estado autor. O Ministro ressaltou a impossibilidade de requisição de bens públicos, o que somente teria lugar com a decretação do estado de defesa (art. 136, § 1º, II) ou de sítio (art. 139, VII), que outorgam poderes de crise ao Presidente da República.

Na mesma linha de entendimento, nos autos da Ação Cível Originária nº 3.393, proposta perante o Supremo Tribunal Federal pelo Estado do Mato Grosso contra a União e a empresa Magnamed Tecnologia Medica S/A, o Ministro Relator Roberto Barrosos concedeu a tutela antecipada, também sob o fundamento de impossibilidade da requisição de bens públicos:

“Quanto à probabilidade do direito, considero plausível a tese de que os ventiladores pulmonares adquiridos pelo Estado constituem bens públicos, os quais não podem ser objeto de requisição administrativa. Nos termos do art. 5º, XXV, da Constituição, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”. Assim, o uso desse instituto pressupõe, em regra, a propriedade privada dos bens requisitados. Apenas em situações excepcionalíssimas que não se fazem presentes neste momento – a vigência de estado de defesa ou de estado de sítio – a ordem constitucional autoriza o uso compulsório, pela União, de bens e serviços pertencentes a outros entes federativos (arts. 136, § 1º, II, e 139, VII, da Constituição).”

Prevalece, portanto, tanto na doutrina como na jurisprudência, o entendimento de que a requisição administrativa só deve atingir bens particulares, sendo o estado de defesa ou o estado de sítio hipóteses de exceção que autorizariam o uso compulsório e a requisição de bens, de outros entes federados, pela União.

2.2. Há lugar para consenso na requisição administrativa?

Como se percebeu nos tópicos anteriores, a requisição administrativa é ato: (i) unilateral do Poder Público, sem necessidade de concordância do particular; (ii) discricionário, que depende do juízo de conveniência e oportunidade do gestor para a sua utilização como medida de combate ao perigo público eminente; e (iii) autoexecutório, que não necessita da intervenção do Poder Judiciário para a sua efetivação.

A requisição administrativa é um ato de império do Estado que, se praticado dentro dos parâmetros constitucionais e legais, não possibilita ao particular questionar o mérito das medidas, mas apenas vícios que possam ensejar eventual declaração de nulidade. Nesse contexto, é importante tratar do que vem se chamando de requisição administrativa consensual.

A situação de iminente perigo público é de reconhecimento quase unânime entre os gestores públicos em razão da pandemia causada pelo novo coronavírus. A Portaria nº 188 de 2020 do Ministério da Saúde declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) já em 03 de fevereiro deste ano. Com a identificação do primeiro caso em 26 de fevereiro de 202023, outras normas confirmaram a situação de emergência, como o Decreto Legislativo nº 6 de 20 de março de 2020, que decretou o estado de emergência para fins do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, e a própria Lei 13.979/2020, que estabeleceu medidas de combate à crise. Além disso, governadores e prefeitos também declararam a situação de calamidade pública em seus estados e municípios.

A circunstância de emergência sanitária e, portanto, de iminente perigo público, está devidamente caracterizada e reconhecida, tanto por atos do governo federal, como por atos das esferas estaduais e municipais. Ademais, a situação nitidamente se agrava à medida que a doença avança na população brasileira, causando o colapso do sistema de saúde em muitos municípios e estados.

No entanto, a requisição administrativa, na condição de medida coercitiva de intervenção estatal na propriedade privada, não deve ser usada como primeira resposta na tentativa de combate à crise. As soluções acordadas são benéficas, tanto para a Administração Pública, como para o particular.

Não se pode perder de vista que a intervenção na propriedade privada por meio da requisição administrativa, apesar de mirar o interesse público, limita um direito fundamental das pessoas físicas e jurídicas. E limita de forma drástica. É por esse motivo que deve ser medida excepcional e temporária, nos termos do Texto Magno. Segundo Marçal Justen Filho,

“A requisição de bens privados somente é admissível quando for a única alternativa para satisfazer as necessidades coletivas. E incumbe à autoridade estabelecer, de modo imediato, as condições para o pagamento de indenização, que deve ser justa e em dinheiro.”24

A Lei 13.979/2020 (arts. 4º e seguintes) que previu a requisição administrativa como medida de combate à crise, também estabeleceu diversas flexibilizações para as contratações públicas. O que se quer ressaltar é que a legislação que vem sendo editada tem justamente o objetivo de dar mais celeridade às contratações do Poder Público, bem como vencer entraves previstos na Lei de Licitações. Ou seja, a requisição administrativa não é a única forma de buscar bens e serviços de combate à crise, nem nos parece deva ser a primeira opção do administrador público, conforme destaca Marçal Justen Filho:

“É inconstitucional requisitar bens e serviços de particulares como solução rotineira para enfrentar a pandemia. A medida, prevista na Lei 13.979/2020, apresenta natureza excepcional e deve ser acompanhada de imediata indenização”25.

O Projeto de Lei 2.324 de 2020, apresentado pelo Senador Rogério Carvalho e outros, visando alterar a Lei 13.979/2020 para instituir o uso compulsório pelos entes federativos para internação de pacientes acometidos de Síndrome Aguda Respiratória Grave ou com suspeita ou diagnóstico de COVID-19, também dá clara preferência à solução consensual em detrimento da utilização compulsória. No projeto já aprovado pelo Senado Federal, determina-se que, antes do uso compulsório dos leitos privados, se deve tentar a contratação emergencial, sendo necessário um chamamento público que deverá conter no mínimo, a quantidade, prazo de utilização dos leitos e valores de referência, baseados em cotação prévia de preços no mercado.

A utilização compulsória é uma forma de requisição administrativa pelo seu caráter impositivo ao particular de uso de sua propriedade. Porém, com a exigência de tentativa de contratação emergencial por meio do chamamento público, se a legislação for aprovada, estará consagrado o caráter subsidiário do instituto.

Ao se buscar uma solução consensual para a utilização de bens e serviços de propriedade privada, coloca-se a requisição administrativa como última opção, como defende a doutrina. Assim, não há que se falar em requisição consensual, mas sim em solução consensual do problema. Essa “requisição ajustada”, como também é chamada, certamente traz benefícios ao particular e à Administração Pública. Ora, pelo só fato de a solução consensual garantir e preservar um direito fundamental, já deve ser priorizada.

Mas não só. A contratação voluntária garante ao Poder Público o valor a ser desembolsado e, ao particular, o valor a ser recebido. A fixação prévia e contratual do valor de uso dos bens, do tempo desse uso e da forma de pagamento, confere segurança jurídica, possibilita um mínimo de previsibilidade de gastos, uniformiza situações e evita discussões judiciais e indenizações futuras. Ademais, não se pode olvidar que a cooperação entre as partes, em uma relação consensual, dá-se de maneira muito mais harmônica.

Apesar das vantagens apresentadas, certo é que a requisição administrativa é o meio mais célere para utilização desses bens particulares. Considerando a situação de iminente perigo público, mesmo que a contratação pública dispense a licitação e tenha o procedimento simplificado, a requisição administrativa ainda pode ser o único caminho para atender, em tempo hábil, o interesse público no caso concreto.

Como visto, a requisição administrativa pressupõe a ideia de imposição pelo Poder Público da utilização dos bens de propriedade particular. Eventual composição amigável quanto ao tempo de uso, valor da indenização, prazos de pagamento, mesmo que não gere lucro ou não cubra todos os gastos do particular, afastam a caracterização do instituto previsto no art. 5º, inciso XXV, da Constituição Federal, ainda que muitas vezes possa ser a melhor forma de enfrentar o colapso do sistema de saúde.

No tópico seguinte, abordaremos o interessante exemplo de utilização consensual de leitos adotada pela municipalidade de São Paulo. O Decreto paulistano de número 59.396, de 05 de maio de 2020, ao regulamentar a Lei 17.340 de 30 de abril de 2020, previu que a requisição deve ter como objeto leitos ociosos, estabeleceu a possibilidade requisição administrativa de leitos pelo Secretário de Saúde, porém, com prioridade para a contratação.

Veremos esse e outros casos a seguir.

3. Requisição como resposta a crises sanitárias

3.1. Panorama geral das requisições administrativas no país na pandemia

Desde o início da crise provocada pelo novo coronavírus, a requisição administrativa vem sendo levantada como uma das formas de atenuar o colapso do sistema público de saúde, ante a ineficiência das medidas de isolamento social anteriormente decretadas objetivando a contenção da pandemia.

Por todo o país, entes de todas as esferas determinam requisições de bens das mais variadas formas. A ausência de uma regulação sistematizada da matéria faz com que os atos administrativos tenham aspectos diferenciados, por vezes evidenciando alguma densidade normativa, por vezes até se afastando do instituto preconizado pelo legislador constitucional.

Os decretos editados, em regra, estabeleceram que a requisição administrativa se dá conforme a Constituição Federal, art. 5º, inciso XXV26, nos termos do art. 15, inciso XIII, da Lei 8.080/199027, ou fazendo referência a Lei 13.979/2020, art. 3º, inciso VII28. No entanto, há outros atos que inovam e já estabelecem como será feita a indenização dos bens requisitados.

Podemos utilizar como exemplo o Decreto 69.530 de 18 de março de 2020, do Estado de Alagoas, que determina que a indenização da requisição administrativa deve se dar conforme a “tabela do SUS” (art. 3º, §1º). Já o Decreto nº 4.315, de 21 de março de 2020, do Paraná, no art. 16, §1º, estabelece que a indenização terá por base a Tabela do SUS ou justa indenização. O Decreto 33.510 de 16 de março, do Estado do Ceará, e o Decreto 10.115 de 16 de março de 2020, do Estado do Mato Grosso do Sul, estabelecem que a indenização deve observar os parâmetros do SUS para os procedimentos de saúde e os preços de mercado para as demais necessidades (art. 2º, parágrafo único e art. 8º, inciso VI, respectivamente).

Na cidade de São Paulo, a Lei 17.340 de 30 de abril de 2020, previu em seu art. 10 a possibilidade de requisição de leitos particulares ociosos, enquanto durar a pandemia de COVID-19, reiterando previsões de leis federais29. O Decreto 59.396 de 05 de maio de 2020, que regulamentou a referida lei, previu no art. 12 que o Secretario de Saúde poderá requisitar os leitos enquanto durar a pandemia. No entanto, em seu parágrafo único, determinou que previamente deve ser tentada a utilização consensual dos bens.

Em razão disso, a Prefeitura lançou edital de chamamento para a contratação por dispensa de licitação de até 100 (cem) Leitos de Unidade de Terapia Intensiva – UTI, objetivando a ampliação de assistência à saúde a pacientes acometidos pela Infecção Humana pelo novo Coronavírus (COVID-19).

No entanto, as medidas locais não devem se afastar dos parâmetros estabelecidos na Constituição e nas leis federais que disciplinam a matéria, especialmente no que diz respeito ao caráter excepcional da requisição e à justa indenização pelos danos sofridos.

3.2. Indenizações Prévias e enriquecimento sem causa do estado

A Constituição, quando estabelece a requisição administrativa no art. 5º, inciso XXV, garante ao particular uma indenização ulterior por eventuais danos causados a sua propriedade. No entanto, não traz parâmetros de aferição desses danos, o mesmo ocorrendo com a legislação infraconstitucional que trata sobre o tema.

A doutrina entende que o pagamento ulterior deve estar condicionado ao dano sofrido pelo particular, ou seja, não constatado o dano, não haverá indenização30. Deve haver um nexo de causalidade entre o prejuízo e a ação do Estado. Nas palavras de Carvalho Filho, “a indenização pelo uso dos bens e serviços alcançados pela requisição é condicionada: o proprietário somente fará jus à indenização se a atividade estatal lhe tiver provocado danos”31.

O texto constitucional determina expressamente que essa indenização deve ser ulterior. Isso se deve em razão da necessidade de urgência causada pelo iminente perigo público, que fundamenta a própria requisição. A apuração de um valor determinado previamente à utilização do bem ou serviço poderia causar uma demora incompatível com a situação tida por emergencial. Karlin Olbertz Niebuhr afirma que a outra razão para que o pagamento seja posterior é o fato de o dano ser incerto, não sendo possível observar a priori o quanto do patrimônio particular será afetado32.

No entanto, é possível observar que há Estados e Municípios que estão estipulando um valor para o uso da propriedade privada requisitada. Por exemplo, o Decreto nº 69.530 de 18 de março de 2020, do Estado de Alagoas, estabelece em seu art. 2º, inciso X, a requisição administrativa como medida para enfrentamento da crise, garantida a indenização justa. Apesar disso, no art. 3º, §1º, predetermina que a indenização será com base na “tabela SUS”33.

O referido ato administrativo vincula antecipadamente o pagamento da indenização a valores que são usualmente utilizados em contratações do SUS. A prescrição parece tentar oferecer alguma segurança jurídica, tanto para a Administração Pública, como para o particular requisitado. Para a primeira porque possibilita, em tese, estimar quanto o erário desembolsará ao final da requisição. Para o segundo porque viabiliza o conhecimento prévio do valor a ser recebido e proporciona uma perspectiva de indenização mais célere, dado que seria despiciendo um procedimento de liquidação.

Ocorre que um valor preestabelecido muitas vezes não corresponderá ao dano sofrido particular. Ainda no magistério de Karlin Olbertz Niebuhr, “dependerá do uso que será conferido ao bem e do tempo em que for requisitado, de que o valor de indenização eventualmente acordado quando anunciada a requisição será meramente estimado”34.

Para bens móveis consumíveis, tais como máscaras, aventais e medicamentos, o dano causado ao requisitado é evidente, dado que a Administração Pública não devolverá o bem. Nesses casos, defende-se que a indenização deve corresponder ao valor que o bem chegaria ao consumidor final35, levando em consideração que a indenização deve abranger danos emergentes e lucros cessantes. Para bens não consumíveis, a solução harmônica com o texto constitucional aponta para aferição pela Administração Pública, de ofício, de eventuais danos sofridos pelo particular.

Nesse sentido, finda a requisição administrativa, é necessário que se proceda a devida liquidação dos danos sofridos pelo particular. À primeira vista, tal assertiva visa apenas garantir o direito de propriedade do particular, mas deve ser considerado que também serve de proteção ao patrimônio público, pois o dano efetivamente apurado pode ser inferior ao inicialmente previsto.

Não é demais ressaltar que um valor acordado entre as partes deve ser buscado, mesmo em casos de requisição administrativa. Ora, mesmo se tratando de ato administrativo unilateral, ao qual o requisitado se submete independentemente de sua vontade, é possível que haja composição ao menos quanto o valor a ser pago pelos danos causados. No mesmo sentido Karlin Niebuhr:

“A Lei 13.867/2019 autorizou a mediação e arbitragem para definição da indenização em procedimentos de desapropriação e não parece existir razão que impeça a adoção da mesma solução para as requisições administrativas, quando acordado entre as partes. Desapropriação e requisição, embora instrumentos distintos produzem efeitos jurídicos restritivos sobre direito de propriedade o que permite a invocação ao mesmo regime legal destinado a fixar o valor da indenização”36.

Verificado o dano, o Estado deve pagar a indenização voluntariamente, sem necessidade de o proprietário buscar a intervenção do Poder Judiciário, sob pena de violação do regramento constitucional e legal do instituto, ressalvada a possibilidade de questionamento do valor quando este não for suficiente para indenizar o dano sofrido.

3.3. Requisição VS. Fila ùnica

Com o avanço da pandemia e a premente confirmação de que sistema público de saúde não suportará a demanda por atendimento hospitalar, outro tema objeto de debates e que influi diretamente na propriedade privada é a organização de uma fila única para atendimento das pessoas acometidas por COVID-19.

A principal estratégia de combate ao coronavírus, principalmente em razão da inexistência de uma vacina e de tratamento medicamentoso eficaz, é evitar que um grande contingente de pessoas contraia a doença ao mesmo tempo. Isso porque, considerado o longo período de internação hospitalar usualmente necessário para os casos de maior gravidade, a contenção da expansão da doença ou mesmo o escalonamento da probabilidade de contaminação, são fatores que poderiam evitar o colapso do sistema, assegurando, em princípio, tratamento adequado para aqueles que fiquem doentes e necessitem de internação hospitalar.

O Brasil iniciou a implementação de medidas de isolamento social relativamente cedo, em comparação com outros países. No entanto, o cumprimento dessas medidas não apresentava caráter compulsório e, com o passar do tempo, o universo de indivíduos em quarentena foi ficando mais restrito. Nessa toada, o cenário alertado pelos especialistas desde o início da calamidade, caso as medidas de isolamento não fossem efetivas, começa a se delinear com a saturação do sistema público de saúde em alguns estados da federação. Em abril, já se noticiava o colapso, ou sua aproximação, nos estados de Amazonas, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo 37.

Diante desse quadro, reforçou-se a ideia de uma fila única de leitos da rede pública e da rede privada para pacientes de COVID-19, gerida pelo Poder Público. Esse foi o entendimento do Conselho Nacional de Saúde, através da Recomendação nº 026 de 22 de abril de 2020, onde cita em suas considerações a legislação vigente sobre requisição administrativa, o avanço do vírus no território nacional, a quantidade de leitos de unidade intensiva de tratamento- UTI na rede pública e na rede privada, o colapso enfrentado por alguns municípios. Recomenda às Secretarias Municipais de Saúde que requisitem, a partir da conclusão de insuficiência de recursos, o uso de bens particulares, incluindo leitos, regulando o acesso segundo prioridades sanitárias de cada caso. Ao Ministério da Saúde e às Secretarias Estaduais de Saúde, recomenda a coordenação nacional e regional de alocação de recursos, respectivamente38.

No mesmo sentido, foi ajuizada a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental- ADPF nº 671, pelo Partido Socialismo e Liberdade- PSOL, requerendo cautelarmente que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios “executem a requisição administrativa da totalidade dos bens e serviços de pessoas jurídicas e físicas relativos à assistência à saúde prestados em regime privado de forma a que o Poder Público passe a regular imediatamente a utilização dos leitos de UTI, mesmo nas redes privadas, para todo doente que dele necessite, enquanto perdurar a necessidade por conta da pandemia.”

O Ministro Relator Ricardo Lewandowski negou seguimento à ação, ao fundamento de que a medida pretendida vulnera o princípio da separação de poderes, já que a decisão em questão é de cunho político-administrativo. O julgador entendeu que o escopo da ação é requisitar compulsória e indiscriminadamente todos os bens privados voltados à saúde, o que atropelaria medidas alternativas que poderiam ser tomadas por autoridades federais, estaduais e municipais. Nesse sentido, não haveria omissão dos gestores públicos por descumprimento preceito fundamental.

De modo geral, é possível perceber que tanto a recomendação do Conselho Nacional de Saúde, como a ação proposta pelo PSOL, de uma forma ou de outra, visam o controle pelo Poder Público dos recursos necessários ao combate da pandemia. A ideia que une as iniciativas é a instituição da fila única por meio da requisição administrativa.

Porém, a instituição de uma fila única com requisição de todos os leitos privados de uma certa localidade esbarra nas premissas necessárias para a validade do instituto.

Um primeiro ponto que se faz necessário ressaltar é a impossibilidade da instituição de uma fila única nacional com a requisição de todos os leitos privados pela União. Isso porque a situação da lotação dos leitos privados e públicos em todo o país é diferente e não é estática. Enquanto algumas capitais já atingiram o colapso do seu sistema público de saúde, outras tem a situação controlada. Nesse sentido, o ato administrativo de requisição careceria de fundamentação para muitos dos seus objetos, levando a sua nulidade.

Essa requisição geral e irrestrita geraria dúvidas quanto a possibilidade de utilização desses leitos de origem privada na hipótese de permanecerem ociosos por não utilização no setor público. Ou mesmo se seria possível a instituição de uma fila única nacional, com transferência de pacientes entre os Estados, de acordo com a saturação dos respectivos sistemas.

Essas considerações nos levam a discutir a possibilidade de requisição administrativa para a constituição especificamente de filas únicas nos Estados, Distrito Federal e Municípios.

No caso dos Estados, a requisição administrativa irrestrita de leitos também parece encontrar obstáculos nas diferentes situações em que se encontram os Municípios de seu território, principalmente quando se está falando daqueles com maior extensão e com regiões que muitas vezes diferem umas das outras, levando a mesma discussão quanto à validade do ato administrativo.

Resta avaliar a possibilidade de um Município, ou mesmo o Distrito Federal, requisitar todos os leitos privados em seu território. Como já dito anteriormente, diversas cidades já têm o seu sistema de saúde público saturado e com leitos de entidades privadas ociosos. Está-se diante, indubitavelmente, de um perigo público iminente: centenas, milhares de pessoas impossibilitadas de buscar atendimento médico com a consequente elevação do número de mortes, não só pela COVID-19, mas também por outras doenças, em razão da lotação. Não há dúvidas quanto à existência do interesse público.

Outro ponto é que não há restrição nas normas, tanto na Lei 8.080/1990 quanto na Lei 13.979/2020, sobre quais bens podem ou não ser requisitados, ou seja, não há restrição para que todos os bens sejam requisitados ao mesmo tempo. A priori, não há impedimento jurídico para que todos os leitos privados de uma certa localidade sejam requisitados pelo ente estatal.

No entanto, deve-se levar em consideração que a entidade privada ficará, pela ausência de meios, impedida de prestar o serviço para os seus usuários. Pela perspectiva da responsabilidade civil, principalmente para os contratantes de seguros privados de saúde, a inexistência de leitos de UTI para o seu atendimento, pode levar à responsabilização da gestão pública, como será discutido no tópico a seguir.

Vale lembrar que na hipótese de o segurado não encontrar leitos na rede privada, remanesce a obrigação estatal em relação ao seu atendimento devido a determinação constitucional dos princípios da universalidade e da igualdade do sistema único de saúde. A fila única foi concebida pela ideia de tratamento igualitário, não pela negativa de atendimento do usuário do sistema privado.

Assim, o estabelecimento de uma fila única é medida complexa que demanda do Estado estrutura e organização para o seu funcionamento correto, não sendo aconselhável a sua implementação pelo Poder Judiciário, como bem destacou o Ministro Ricardo Lewandowski na ADPF nº 671, sob pena haver mais prejuízos ao direito à saúde dos cidadãos do que benefícios.

3.4. Responsabilidade Civil

As requisições administrativas que venham a ocorrer na situação de calamidade pública causada pela pandemia do novo coronavírus, sejam elas de insumos médicos, de Equipamentos de Proteção Individual, de medicamentos, de serviços ou de leitos de UTI da rede privada, podem acarretar na correspondente insuficiência desses mesmos itens para as pessoas que são usuárias da saúde suplementar e, principalmente, para os contratantes de planos de saúde.

Na ausência de atendimento e/ou suprimento, certamente as pessoas que se sentirem prejudicadas ajuizarão demandas contra as entidades privadas de saúde. A pergunta que se faz no presente caso é se o Estado pode ser responsabilizado pelo inadimplemento contratual da entidade privada de saúde, caso haja nexo causal entre esse e o ato de requisição estatal. Hipoteticamente, se a pessoa contratante de seguro de saúde não for atendida em razão da ausência de vagas decorrente de requisição administrativa, seria possível a responsabilização do Estado? A resposta para esse questionamento passa pela análise da responsabilidade civil do Estado e do fornecedor privado de saúde.

Seguramente essa questão será debatida pelo Poder Judiciário com as diversas nuances que poderão ser apresentadas nos casos concretos. No entanto, importante apontar que a pessoa física ou jurídica que teve seus bens requisitados e que, por essa razão, causou um possível dano a terceiro, está acobertada por uma excludente da responsabilidade civil, decorrente da ausência do nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano causado por fato da administração. Esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça39.

No entanto, há de se perquirir ainda, se o dano sofrido pelo particular, ou seja, por aquela pessoa que deixou de receber o devido atendimento em uma UTI, pode eventualmente ser indenizado pelo ente público requisitante.

A responsabilidade civil do Estado pelos danos causados ao administrado requisitado não se discute ante a expressa previsão constitucional do dever de indenizar, porém, a indenização de terceiro é matéria que merece especial atenção. No precedente citado40, percebe-se que o Superior Tribunal de Justiça, ao reconhecer a aplicação do fato do príncipe para afastar a responsabilidade civil do particular, entendeu ser possível a responsabilização do Estado, como afirmou o Ministro Relator Marcos Buzi em seu voto:

“É entendimento assente nesta Corte Superior que o fato do príncipe, caracterizado como uma imposição de autoridade causadora de dano, de um lado, viabiliza a responsabilização do Estado; e, de outro, rompe do liame necessário entre o resultado danoso e a conduta dos particulares, configurando, em disputas privadas, nítida hipótese de força maior, tal como ocorreu no presente caso.”

Pode-se concluir, a partir do entendimento preconizado pelo Tribunal Superior, ser possível, em princípio, a responsabilização do Estado perante terceiros prejudicados, pelo ato de requisição administrativa de bens e serviços particulares.

Em que pese a responsabilização objetiva do Estado constitucionalmente estabelecida no art. 37, §6º, impõe-se uma análise minuciosa caso a caso, evitando-se eventual responsabilização automática do ente público pelo inadimplemento contratual do particular requisitado.

Nesse caso, especial atenção deverá ser dispensada à análise da validade dos atos de requisição que causaram dano a terceiro, bem como a efetiva caracterização de uma situação de perigo iminente. Em outras palavras, a situação de emergência sanitária, sob a ótica da responsabilização do Estado, também pode configurar uma hipótese de força maior que eventualmente possa excluir a responsabilidade civil do ente público requisitante por rompimento do nexo de causalidade.

Assim, além da indenização devida ao particular, que teve seus bens e serviços requisitados para o enfrentamento da pandemia causada pelo novo coronavírus, é possível, em princípio, a responsabilização do Estado pelos danos causados a terceiros em decorrência do ato de requisição administrativa.

4. Conclusão

A requisição administrativa é medida a ser aplicada com fundamento na supremacia do interesse público sobre o particular, observada a função social da propriedade. A situação de emergência sanitária causada pelo novo coronavírus lançou luzes para a desigualdade social existente no país, especialmente em relação às condições dos sistemas de saúde público e privado. A necessidade de serviços de saúde mais igualitários levou a discussão dos aspectos abordados no presente texto.

O instituto é meio de intervenção da Administração Pública na propriedade privada. Dessa forma, na condição de medida excepcional e limitadora de direitos fundamentais, a sua utilização deve estar restrita às hipóteses que se adequem ao desenho constitucional e legal, sob pena de responsabilidade do gestor. Anote-se que, apesar de ser um instituto antigo, poucas vezes foi utilizado no Brasil, o que levou à sua parca regulamentação infraconstitucional, bem como à sua baixa recorrência na jurisprudência.

A pandemia no Brasil, diante das desigualdades sociais e regionais, como também das diferentes estratégias de enfrentamento adotadas por cada ente da federação, está avançando de maneira não uniforme no território nacional. Essa falta de uniformidade, no que diz respeito ao tema em reflexão, também pode ser notada nos decretos que disciplinaram a requisição administrativa para o período de emergência sanitária.

A requisição administrativa, na condição de medida excepcional e subsidiária, deve ser adotada de maneira regrada, coordenada e controlada, sob pena de acarretar a responsabilização do ente requisitante e onerar orçamentos futuros. Observados esses pressupostos, o instituto tem seus requisitos legais devidamente delineados no ordenamento jurídico pátrio, podendo ser utilizado pela Administração Pública como ferramenta relevante no atual cenário, sem olvidar de que trata de uma hipótese de limitação de direito fundamental.


1 PORTELA, Margareth Crisóstomo et al. Limites e possibilidades dos municípios brasileiros para o enfrentamento dos casos graves de COVID19. Nota Técnica, n. 1, 2020. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2020.2 RACHE, Beatriz et al. Necessidades de infraestrutura do SUS em preparo à COVID-19: leitos de UTI, respiradores e ocupação hospitalar. São Paulo: Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, 2020.

3 Art. 196 da CF: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

4 SOLHA, Raphaela Karla de Toledo. Sistema Único de Saúde: componentes, diretrizes e políticas públicas. 1ª ed. São Paulo: Érica, 2014, p. 11.

5 PAIM, Jairnilson Silva. Aspectos Conceituais. In: SUS- Sistema Único de Saúde: tudo o que você precisa saber/ Jairnilson Silva Paim. São Paulo, Rio de Janeira: Atheneu, 2019, p.

6 Agência Nacional de Saúde Suplementar, 2020. Disponível em <https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais>. Acesso em 13/05/2020.

8 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 466.

9 CARVALHO FILHO. Manual de Direito Administrativo. 33 ed. São Paulo: Atlas, 2019, p.1249/1250.

10 NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 334.

11 “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

(…)”

12 “Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1º O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:(…)

II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.”

13“Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

(…)

VII – requisição de bens.”

14 DE MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes. Requisição administrativa constitucional: fundamentos normativos e características estruturais da medida interventiva. Revista Controle: Doutrinas e artigos, v. 16, n. 1, p. 113, 2018

15 CARVALHO FILHO. Manual de Direito Administrativo. 33 ed. São Paulo: Atlas, 2019, p.1266.

16 DE MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes. Requisição administrativa constitucional: fundamentos normativos e características estruturais da medida interventiva. Revista Controle: Doutrinas e artigos, v. 16, n. 1, p. 113, 2018

17Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

(…) III – requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra;

(…)

18 A Lei Delegada nº 4 de 26.09.1962, que trata da intervenção do domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo, foi recentemente revogada pela Lei 13.874/2019.

19Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

(…)

§ 3 o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo público iminente.”

20 “Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições:

(…)XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização;”

21 “Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:

(…)VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa;

(…)”

22 EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. UNIÃO FEDERAL. DECRETAÇÃO DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. REQUISIÇÃO DE BENS E SERVIÇOS MUNICIPAIS. DECRETO 5.392/2005 DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO. Mandado de segurança, impetrado pelo município, em que se impugna o art. 2º, V e VI (requisição dos hospitais municipais Souza Aguiar e Miguel Couto) e § 1º e § 2º (delegação ao ministro de Estado da Saúde da competência para requisição de outros serviços de saúde e recursos financeiros afetos à gestão de serviços e ações relacionados aos hospitais requisitados) do Decreto 5.392/2005, do presidente da República. Ordem deferida, por unanimidade. Fundamentos predominantes: (i) a requisição de bens e serviços do município do Rio de Janeiro, já afetados à prestação de serviços de saúde, não tem amparo no inciso XIII do art. 15 da Lei 8.080/1990, a despeito da invocação desse dispositivo no ato atacado; (ii) nesse sentido, as determinações impugnadas do decreto presidencial configuram-se efetiva intervenção da União no município, vedada pela Constituição; (iii) inadmissibilidade da requisição de bens municipais pela União em situação de normalidade institucional, sem a decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio. Suscitada também a ofensa à autonomia municipal e ao pacto federativo. Ressalva do ministro presidente e do relator quanto à admissibilidade, em tese, da requisição, pela União, de bens e serviços municipais para o atendimento a situações de comprovada calamidade e perigo públicos. Ressalvas do relator quanto ao fundamento do deferimento da ordem: (i) ato sem expressa motivação e fixação de prazo para as medidas adotadas pelo governo federal; (ii) reajuste, nesse último ponto, do voto do relator, que inicialmente indicava a possibilidade de saneamento excepcional do vício, em consideração à gravidade dos fatos demonstrados relativos ao estado da prestação de serviços de saúde no município do Rio de Janeiro e das controvérsias entre União e município sobre o cumprimento de convênios de municipalização de hospitais federais; (iii) nulidade do § 1º do art. 2º do decreto atacado, por inconstitucionalidade da delegação, pelo presidente da República ao ministro da Saúde, das atribuições ali fixadas; (iv) nulidade do § 2º do art. 2º do decreto impugnado, por ofensa à autonomia municipal e em virtude da impossibilidade de delegação.

(MS 25295, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2005, DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-2007 PP-00022 EMENT VOL-02292-01 PP-00172)

23 AQUINO, Vanessa; MONTEIRO, Natália. Brasil confirma primeiro caso da doença. Ministério da Saúde, Brasília, 26 de fev de 2020. Disponível em < https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus>. Acesso 18/05/2020.
24 JUSTEN FILHO, Marçal. A epidemia da requisição administrativa e seus efeitos destruidores. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.]- Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle.
25 JUSTEN FILHO, Marçal. A epidemia da requisição administrativa e seus efeitos destruidores. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.]- Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle.

26 Decreto nº 19.553 de 18 de março de 2020 do Estado da Bahia.

27 Decreto nº 40.567 de 24 de março de 2020 do Estado de Sergipe.

28 Decreto nº 4.315 de 21 de março de 2020 do Estado do Paraná.

29 Destacamos que a competência para legislar sobre requisições civis e militares é privativa da União nos termos do art. 22, inciso III, da CF/88. No entanto, como dito, repete a previsão de leis federais sobre o tema.

30 DE MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes. Requisição administrativa constitucional: fundamentos normativos e características estruturais da medida interventiva. Revista Controle: Doutrinas e artigos, v. 16, n. 1, p. 113, 2018.

31 CARVALHO FILHO. Manual de Direito Administrativo. 33 ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 1268.

32 NIEBUHR, Karlin Olbertz. Requisitos de validade das requisições administrativas. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.]- Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle, tópico 2.

33 Art. 3º Para os fins deste Decreto, considera-se:

(…)

§ 1º A requisição administrativa, como hipótese de intervenção do Estado na propriedade, sempre fundamentada, deverá garantir ao particular o pagamento posterior de indenização com base na chamada “tabela SUS”, quando for o caso, e terá suas condições e requisitos definidos em atos infralegais emanados pela Secretaria de Estado da Saúde – SESAU, sendo certo, que seu período de vigência não pode exceder à duração da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do COVID-19 (coronavírus) declarada pela Organização Mundial de Saúde – OMS, e envolverá, em especial:

34 NIEBUHR, Karlin Olbertz. Requisitos de validade das requisições administrativas. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.]- Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle, tópico 2.

35 ARAÚJO, Aldem Johnston Barbosa. A requisição administrativa de bens móveis no regime jurídico excepcional de emergência sanitária instaurado em razão da pandemia do COVID-19. Disponível em <https://ambitojuridico.com.br/noticias/a-requisicao-administrativa-de-bens-moveis-no-regime-juridico-excepcional-de-emergencia-sanitaria-instaurado-em-razao-da-pandemia-do-covid-19>. Acesso em 18/05/2020.

36 NIEBUHR, Karlin Olbertz. Requisitos de validade das requisições administrativas. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.] – Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle, tópico 2.

37 Estados já enfrentam falta de leitos de uti para covid-10. O Globo, 20 de abr. de 2020. Disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/estados-ja-enfrentam-falta-de-leitos-de-uti-para-covid-19-1-24382684>. Acesso em 21/05/2020.

38 Recomendação nº 062. De 22 de abril. de 2020. Disponível em <http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1131-recomendacao-n-026-de-22-de-abril-de-2020>. Acesso em 25/05/2020

39 AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL – RESPONSABILIDADE CIVIL – DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO – INSURGÊNCIA DO AUTOR.1. O fato do príncipe, caracterizado como uma imposição de autoridade causadora de dano, de um lado, viabiliza a responsabilização do Estado; e, de outro, rompe do liame necessário entre o resultado danoso e a conduta dos particulares, configurando, em disputas privadas, nítida hipótese de força maior. Precedentes.

O Tribunal de origem, soberano na análise do acervo fático-probatório, entendeu que a causa determinante dos prejuízos cobrados na demanda pelo atraso na devolução dos containeres se deve a ato de império da administração da Receita Federal por obstar, erroneamente, o desembaraço das mercadorias neles contidas, caracterizando o fato da administração, o qual equipara-se à força maior, causa excludente de responsabilidade civil. Incidência da Súmula 7/STJ. Precedentes.

2. A aplicação da Súmula 7 do STJ impede o exame do dissídio, na medida em que falta identidade entre os paradigmas apresentados e os fundamentos do acórdão, tendo em vista a situação fática do caso concreto, com base na qual deu solução a causa a Corte de origem.

3. Agravo interno desprovido.

(AgInt no REsp 1237376/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016)

40 AgInt no REsp 1237376/RJ


Referências bibliográficas

AGÊNCIA Nacional de Saúde Suplementar, 2020. Disponível em < https://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-gerais>. Acesso em 13/05/2020.

AQUINO, Vanessa; MONTEIRO, Natália. Brasil confirma primeiro caso da doença. Ministério da Saúde, Brasília, 26 de fev de 2020. Disponível em < https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus>. Acesso 18/05/2020.

ARAÚJO, Aldem Johnston Barbosa. A requisição administrativa de bens móveis no regime jurídico excepcional de emergência sanitária instaurado em razão da pandemia do COVID-19. Disponível em <https://ambitojuridico.com.br/noticias/a-requisicao-administrativa-de-bens-moveis-no-regime-juridico-excepcional-de-emergencia-sanitaria-instaurado-em-razao-da-pandemia-do-covid-19>. Acesso em 18/05/2020.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no REsp 1237376/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ACO 3.385, Relator: Ministro Celso de Mello, Decisão Monocrática, julgado em 20/04/2020, DJe-99 DIVULG 23/04/2020 PUBLIC 24/04/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ACO 3.393, Relator: Ministro Roberto Barroso, Decisão Monocrática, julgado em 01/05/2020, DJe-110 DIVULG 05/05/2020 PUBLIC 06/05/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 671, Relator: Ministro Ricardo Lewandowski, Decisão Monocrática, julgado em 03/04/2020, DJe-85 DIVULG 06/04/2020 PUBLIC 07/04/2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 25295, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2005, DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-2007 PP-00022 EMENT VOL-02292-01 PP-00172

CARVALHO FILHO. Manual de Direito Administrativo. 33 ed. São Paulo/SP: Atlas, 2019.

CRUZ, Isabela. Público e Privado: a disputa por leitos de UTI na pandemia. Nexo Jornal, 06 de maio 2020. Disponível em <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/05/06/P%C3%BAblico-e-privado-a-disputa-por-leitos-de-UTI-na-pandemia>. Acesso em 13/05/2020.

DE MORAES FILHO, Marco Antônio Praxedes. Requisição administrativa constitucional: fundamentos normativos e características estruturais da medida interventiva. Revista Controle: Doutrinas e artigos, v. 16, n. 1, p. 113, 2018.

ESTADOS já enfrentam falta de leitos de uti para covid-10. O Globo, 20 de abr. de 2020. Disponível em <https://oglobo.globo.com/sociedade/estados-ja-enfrentam-falta-de-leitos-de-uti-para-covid-19-1-24382684>. Acesso em 21/05/2020.

JUSTEN FILHO, Marçal. A epidemia da requisição administrativa e seus efeitos destruidores. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.]- Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 466.

NIEBUHR, Karlin Olbertz. Requisitos de validade das requisições administrativas. In: Covid-19 e o direito brasileiro/ Marçal Justen Filho [et al.]- Curitiba: Justen, Pereira, Oliveira & Talamini, 2020, edição Kindle.

NOHARA, Irene Patrícia. Direito Administrativo. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2019.

PORTELA, Margareth Crisóstomo et al. Limites e possibilidades dos municípios brasileiros para o enfrentamento dos casos graves de COVID19. Nota Técnica, n. 1, 2020. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, 2020.

RACHE, Beatriz et al. Necessidades de infraestrutura do SUS em preparo à COVID-19: leitos de UTI, respiradores e ocupação hospitalar. São Paulo: Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, 2020.

RECOMENDAÇÃO nº 62 de 22 de abril de 2020. Conselho Nacional de Saúde. Disponível em < http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1135-leitos-de-uti-da-rede-privada-devem-obedecer-fila-unica-do-sus-frente-a-pandemia-recomenda-cns>. Acesso em 25/05/2020.

SOLHA, Raphaela Karla de Toledo. Sistema Único de Saúde: componentes, diretrizes e políticas públicas. 1ª ed. São Paulo: Érica, 2014.

Artigo publicado originalmente na Revista Direito e Medicina Volume VI – Maio/Agosto de 2020.

Tags: , , , , , , , , ,