Por Cecilia Mello, Júlia Dias Jachinto e Marcella Abboud

A medicina paliativa vem ganhando espaço desde a publicação da Resolução CFM 1.973/2011, que a reconheceu como especialidade médica, embora o Código de Ética Médica de 2009 (Resolução CFM nº 1.931/2009) já a adotasse como princípio fundamental: “[n]as situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.”

Referido tratamento é aplicado por meio de uma equipe multidisciplinar com objetivo de proporcionar conforto ao paciente e aos seus familiares, seja aliviando as dores e sintomas incapacitantes decorrentes da enfermidade, seja fornecendo assistência psicológica e até mesmo religiosa.

A pandemia atual traz à baila diversos questionamentos sobre a autonomia de vontade do paciente na escolha do tratamento médico. A matéria encontra-se regulamentada na Resolução CFM 1.995/2012, de maneira que o paciente poderá “[d]efinir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados (…), sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.” (art. 1º, caput), as quais serão registradas em seu prontuário (§ 4º, art. 1º).

As diretivas antecipadas do paciente devem, inclusive, preponderar sobre os desejos dos familiares. A única excludente para a não observância das decisões do paciente se dá quando tais escolhas estiverem em desacordo com o Código de Ética Médica (§ 3º, art. 1º). Entretanto, na hipótese de inexistir qualquer documento nesse sentido, o representante legal do paciente deverá decidir sobre o tratamento ou a medida a ser adotada.

A partir desse cenário, devemos levar em conta os princípios fundamentais estampados no texto da Constituição Federal de 1988. O direito à vida é cláusula pétrea e se consagra pelo quanto disposto no caput do artigo 5º, de forma a salvaguardar a sua inviolabilidade. Também está assegurado por tratados internacionais como a Convenção Americana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional de Direitos Civil e Políticos das Nações Unidas.

Sob outro prisma, também há proibição constitucional ao tratamento desumano (art. 5º, inciso III), que preconiza de forma subjetiva o direito à morte digna. Nesse sentido, o Código de Ética Médica norteia, por meio de seus princípios, o atuar médico sempre com o escopo de resguardar a vida humana, adotando toda a assistência necessária.

É nesse contexto de terminalidade da vida que se insere a distanásia, que é a utilização, pelos médicos, de todas as técnicas e meios disponíveis para a sobrevida do paciente, refletindo uma verdadeira obstinação terapêutica para retardar o evento morte iminente.

Maria Julia KOVÁCS, em seu artigo “Autonomia e o direito de morrer com dignidade”, ao discorrer sobre os diversos aspectos da distanásia, inclusive sobre a envergadura do sofrimento que pode vir a ser causado ao paciente, ainda aponta o inconformismo e desespero dos familiares com a evidência da perda de um ente querido, a postura médica de não assimilar a ineficácia do tratamento oferecido, razões religiosas, dentre outras. Mas a distanásia, longe de propiciar uma morte digna, desencadeia dor intensa e situação de miserabilidade do ser humano. A suspensão de tratamentos inócuos, por sua vez, não deve ser vista como um mecanismo de redução do tempo de vida, mas sim como uma atitude de deixar de alimentar, de forma artificial e inútil, o prolongamento da vida que se finda.

A questão é extremamente polêmica. E aqui não podemos afastar toda a emoção que a rodeia, pois em momento de grande fragilidade e insegurança, a dificuldade para se chegar a uma decisão pode ser quase que intransponível para um familiar. Logo, é possível que a opção por determinado tratamento pelo representante legal, ignorando a orientação médica, possa levar o enfermo a um grau bem maior de sofrimento.

Sob outro prisma, da ética e conduta médica, não se pode negar a importância da análise de cada caso em específico, de maneira a se aferir a existência (ou não) de responsabilidade profissional, civil ou penal acerca da escolha do tratamento. É certo que, em meio a uma crise sanitária que lotou hospitais e leitos de UTIs, todas essas condições devem ser levadas em conta.

Necessário rememorar todo o esforço empenhado pelos profissionais da saúde, enfrentando verdadeira “escolha de Sofia”, como ocorreu na Itália em março de 2020 e que aqui também se delineou posteriormente. No cenário, as associações brasileiras buscaram um sistema de pontuação para auxiliar na decisão sobre qual paciente deveria ser atendido nas UTIs e qual submetido a terapias paliativas. O protocolo orientou a alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia, com uma tabela de critérios a serem observados para a tomada de decisão: gravidade, maior grau de sobrevida e capacidade do paciente. Em um primeiro momento, foi considerada a idade do paciente, mas esse fator foi excluído em uma revisão do documento.

Diante de um – nada distante – cenário caótico do sistema de saúde nacional, caracterizado pela escassez de medicamentos para a intubação e a superlotação de leitos nas UTIs, talvez não tenha havido muito tempo, espaço ou condição para o exercício da autonomia de vontade do paciente e dos seus familiares.

Publicado na coluna de Fausto Macedo no Estadão.

Tags: , , ,