Publicado no Estadão

Por Cecilia Mello, Flávia Silva Pinto Amorim e Marcella Halah Martins Abboud

O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou no dia 26 de fevereiro uma renegociação dos valores de acordos de leniência firmados por empresas investigadas na Operação Lava Jato. Foi estabelecido o prazo de 60 dias para que as partes cheguem a um consenso sobre o tema.

A controvérsia é tema da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1051, apresentada ao Supremo em março de 2023 por três partidos: PSOL, PCdoB e Solidariedade. As legendas dizem que os pactos fechados durante a Lava Jato foram celebrados antes do Acordo de Cooperação Técnica (ACT), que sistematiza regras para o procedimento, e que, portanto, haveria ilicitudes.

Previsto na Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13), o acordo de leniência ainda suscita várias dúvidas. Quais órgãos são responsáveis por sua negociação? O que difere esse mecanismo das delações premiadas?

O que é um acordo de leniência e qual é a diferença em relação ao acordo de delação premiada?

Nos termos da Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção), o acordo de leniência é compreendido como instrumento jurídico sancionador negocial firmado entre a Administração Pública e uma pessoa jurídica, que colabora, livremente, ao disponibilizar informações e meios de prova sobre atos lesivos praticados, previstos na referida norma, e pelos quais assume responsabilidade.

Em consequência, busca-se eventual ressarcimento do dano ao erário, preservação da empresa e de seus funcionários, prevenção de novos ilícitos, afora a valorização de uma cultura empresarial baseada em conformidade, integridade e compliance. Como resultado, serão aplicadas sanções de forma atenuada, nos termos dos benefícios previstos em lei, considerando a postura colaborativa da pessoa jurídica.

Por sua vez, a expressão “delação premiada” é uma das formas em que se materializa a “colaboração premiada”, compreendida como negócio jurídico processual firmado entre o órgão competente e o agente colaborador (ou “delator”, pessoa física). Por meio da Lei nº 12.850/2013, é dado protagonismo à condição especial de alguém que, ao mesmo tempo em que figura como alvo da persecução, presta efetiva colaboração para o deslinde dos fatos ilícitos em questão, por meio da identificação de demais coautores ou partícipes, indicação de informações referentes à localização de eventual vítima com a sua integridade preservada e, até mesmo, mediante a recuperação total ou parcial do produto do crime.

Quais são os órgãos responsáveis pela celebração de acordos de leniência da Lei Anticorrupção e qual é o procedimento para sua realização?

A Lei nº 12.846/2013 preceitua que a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica praticante de qualquer das infrações previstas na referida legislação. No âmbito do Poder Executivo federal, a Controladoria-Geral da União (CGU) é o órgão competente para celebrar os acordos de leniência, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira (art. 16, §10).

Todavia, o art. 29 da Lei Anticorrupção dá margem ao debate concernente à múltipla competência de agentes da Administração Pública, ao dispor sobre a ausência de exclusão das competências do Conselho Administrativo de Defesa Econômica, do Ministério da Justiça e do Ministério da Fazenda para processar e julgar fato que constitua infração à ordem econômica.

No tocante ao procedimento para firmar acordo de leniência, é possível desmembrá-lo nas seguintes etapas: proposta – que deverá ser encaminhada pela pessoa jurídica interessada à CGU; juízo de admissibilidade – consistente na verificação de preenchimento dos requisitos exigidos pela legislação; assinatura do “memorando de entendimentos” – compromisso com as regras e a boa-fé da negociação; negociação – acordo sobre ilícitos, provas, programa de integridade e valores; e celebração – assinatura do acordo e compromisso de colaboração permanente.

É possível firmar acordos de leniência com diferentes órgãos?

A celebração de acordos de leniência com diversos agentes da Administração Pública, sobre os mesmos fatos, fez-se realidade durante a operação lava jato. Dessa forma, foram firmados múltiplos acordos oriundos do mesmo recorte fático e com aplicação de sanções distintas.

Possivelmente, esse cenário é resultado de lacunas legislativas, que direcionam para a ocorrência de regimes diversos de responsabilização de pessoas jurídicas e, via de consequência, a companhia é apenada mais de uma vez em razão do mesmo fato. Além da ocorrência de bis in idem, a ausência de coordenação dos regimes de responsabilidade gera riscos à própria política pública de consensualidade e eficiência do sistema anticorrupção.

Importante marco na correção das falhas sentidas da Lei Anticorrupção, o Acordo de Cooperação Técnica, firmado em 2020 entre diversos atores da Administração Pública, visa corrigir algumas das disformidades do acordo de leniência (anticorrupção) a partir de mecanismos que proporcionam a uniformização de diretrizes e metodologias. Com isso, preserva-se a relevância e individualidade de cada instituição, ao tempo em que se garante uma proporção na aplicação das sanções, seja para evitar bis in idem, seja para coibir eventual enriquecimento ilícito do Estado.

Ademais, a própria CGU reconhece que, em conjunto com a AGU, faz-se possível a negociação do acordo de leniência com a pessoa jurídica de forma coordenada com outras autoridades nacionais (ou, até mesmo, autoridades estrangeiras), diante do alinhamento de entendimento sobre as diretrizes para a construção do acordo e da preservação da competência institucional de cada órgão. Se não for possível, o acordo celebrado com a CGU e AGU considerará os valores eventualmente acordados com outras autoridades, tanto para conciliar, como para evitar dupla sanção à pessoa jurídica colaboradora.

Quais benefícios podem ser concedidos à empresa por meio do acordo de leniência?

A celebração do convencional pela pessoa jurídica que colabora com a elucidação de fatos ilícitos e lesivos à Administração Pública pode conferir benefícios e vantagens à empresa. Nos termos do art. 16, §2º da Lei nº 12.846/2013, há possibilidade de isenção da obrigatoriedade de publicar a punição, pecuniária ou não (art. 6º, II) e da proibição de receber do Governo Federal incentivos, subsídios e empréstimos (art. 19, IV). Além disso, caso firmado o acordo de leniência, poderá ser reduzido em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável (art. 16, §2º).

Como são determinadas as penalidades e as medidas de reparação em um acordo de leniência no Brasil?

No acordo de leniência, deparamo-nos com as sanções administrativas sujeitas ao direito penal e direito administrativo sancionador e, portanto, subordinadas ao ius puniendi estatal; e as medidas reparatórias que, por sua vez, subdividem-se entre medidas ressarcitórias (arts. 19, inciso I e 24, ambos da LAC) e medidas indenizatórias, aproximando-se do regime da responsabilidade civil (arts. 4º, §1º e §2º; 6º § 3º; 13 caput; 16 § 3º; 19 § 4º; 21 § único; e 22 § 5º, todos da LAC).

No que diz respeito às sanções administrativas, o art. 6º da LAC estabelece as medidas a serem aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pela prática de atos lesivos contra a Administração Pública. No tocante à multa, esta será estipulada no valor de 0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação (art. 6º, I). Ainda, caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será fixada em montante que varia de R$ 6.000,00 a R$ 60.000.000,00 (art. 6º, §4º).

Além disso, os critérios para a determinação de penalidades e medidas de reparação também guardam relação com o Acordo de Cooperação Técnica e com a Portaria Normativa Interministerial CGU/AGU nº 36.

Os entes públicos signatários do Acordo de Cooperação Técnica se comprometeram, por meio do acordo, a respeitar as atribuições inerentes de cada um deles, no que diz respeito aos acordos firmados anteriormente à assinatura do ACT. Desse modo, se provocada, a CGU pode renegociar os valores de dano ao erário em conformidade aos parâmetros estabelecidos no ACT. Outrossim, os signatários estabelecerão mecanismos de compensação e/ou abatimento de multa paga pelas empresas nas condutas tipificadas em mais de uma legislação.

A Portaria Normativa Interministerial CGU/AGU nº 36 traz critérios objetivos para a redução em até 2/3 da multa aplicável em acordos de leniência, a partir da observância da “iniciativa de autodenúncia” (tempestividade e ineditismo da informação); do “grau de colaboração” (existência de investigação interna promovida pela própria pessoa jurídica e o procedimento para entrega dessas informações); e das “condições relevantes” (com observância dos parâmetros das condições de pagamento dos compromissos financeiros assumidos pela companhia). Justamente em razão dessa problemática, tramita no Supremo Tribunal Federal a ADI nº 7449/DF e a ADPF nº 1051/DF.

O que acontece se a empresa descobrir outros ilícitos após a celebração do acordo?

O surgimento de novos fatos ilícitos posteriormente à celebração do acordo de leniência pode ensejar a adoção de medidas sob duas perspectivas.

A princípio, caso os fatos descobertos estejam conexos aos atos ilícitos que circundam o acordo firmado, em atenção ao dever de colaboração, a pessoa jurídica deverá comunicar o novo fato ao órgão competente. Este, por sua vez, celebrará Termo de Adiamento ao acordo, por meio do qual se estenderá os mesmos benefícios ao novo contexto fático.

Sob outra ótica, na hipótese de inexistência de conexão entre o fato novo e aquele objeto de acordo, o órgão competente deverá avaliar a possibilidade de alargamento dos benefícios anteriormente concedidos em relação aos ilícitos posteriores. Caso contrário, é provável que novo acordo de leniência seja firmado em relação ao novo fato.

Quais são as principais críticas e desafios a serem destacados em relação aos acordos de leniência no contexto brasileiro?

A pauta atual de julgamento do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal revela uma enorme quantidade de acordos de leniência judicializados para que se faça uma análise em relação ao (des)cumprimento dos requisitos formais do instituto. Nesse contexto, diversas irregularidades e ilegalidades foram escancaradas, dada a exposição de uma série de falhas, seja em relação à redação dos provimentos legislativos que regulamentam essa ferramenta, seja na hermenêutica desenvolvida de forma completamente equivocada, enviesada e distante dos vieses do instituto.

A judicialização dos acordos de leniência demandará o estabelecimento de padrões e diretrizes a serem observados na celebração de acordos futuros.

As questões que estão em debate relacionam-se: à (im)possibilidade de compartilhamento de provas obtidas a partir do acordo de leniência para investigações coordenadas por autoridade que não tomou parte no acordo anteriormente firmado; ao diagnóstico de assimetrias capazes de comprometer a segurança jurídica das leniências, tais como a ausência de parâmetros comuns e objetivos para o cálculo de reparação e ressarcimento de danos, afora a existência de metodologias diversas para a realização desse cálculo; à multiplicidade de regimes de leniência e seus desalinhamentos; à falta de coordenação dos mecanismos de cooperação.

A ausência de atuação coordenada dos diversos agentes do Estado na celebração do acordo de leniência à luz da Lei Anticorrupção acarreta a imposição de penalidades exacerbadas e desproporcionais, além da inexistência de compensação de multas entre diversos agentes estatais que também se viam na condição de firmarem acordos de leniência com as mesmas empresas colaboradoras, resultantes do mesmo contexto fático, de maneira a tornar o instituto da leniência muito pouco atrativo.

Mesmo diante de todas as críticas, esse cenário, até o presente momento, não foi completamente sanado, muito embora, louvavelmente, tenha sido celebrado o Acordo de Cooperação Técnica (que não contou com a aderência do Ministério Público) e a Portaria Normativa Interministerial CGU/AGU nº 36.

Assim, vislumbrou-se a necessidade de criação de um balcão único, local em que haveria a concentração de todos os entes da Administração Pública legitimados a firmarem leniências, de tal sorte que a celebração dos acordos se daria entre a companhia e a Administração Pública como um todo. Nesse cenário, a CGU exerceria o papel de racionalizador do agir estatal, sendo responsável pela unificação, coordenação e fiscalização dos acordos de leniência.

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