Por Cecilia Mello e Flávia Silva Pinto Amorim

No ano de 1973, uma criança de oito anos, nascida em Vitória (ES), foi sequestrada, violentada e morta. O corpo foi encontrado seis dias depois e não houve punição dos criminosos. Com a repercussão do caso e forte mobilização social em defesa dos direitos das crianças e adolescentes, o dia 18 de maio foi instituído pela Lei nº 9.970/2000 como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Trata-se de um símbolo de luta, por parte da sociedade brasileira, contra a violência sexual a crianças e adolescentes.

Após cerca de 50 anos, o cenário de violência e morte segue preocupante.

De acordo com o artigo 2º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), Lei nº 8.069/1990, considera-se criança a pessoa até 12 anos de idade incompletos e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade.

A violência sexual contra crianças e adolescentes pressupõe o exercício de poder para fins de gratificação sexual de adultos, por meio da indução ou constrangimento à prática sexual. Dentre diversas consequências geradas por essa violação de direitos de crianças e adolescentes, há interferências no desenvolvimento da sexualidade saudável, bem como nas dimensões psicossociais, de forma a causar danos muitas vezes irreversíveis.

O Código Penal brasileiro dispõe sobre os crimes contra a dignidade sexual ao longo dos artigos 213 a 226, dentre os quais se identificam tipos penais relacionados a situações de violência sexual, como exemplos o estupro (artigo 213), o estupro de vulnerável (artigo 217-A) e o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (artigo 218-A).

No Brasil, o problema da violência sexual contra crianças e adolescentes é grave e urgente. Entre as inúmeras reflexões que o tema exige, traz-se à tona duas facetas: de um lado, o direito da criança; de outro, o direito do acusado à presunção de inocência.

O direito da criança e do adolescente e o direito à presunção de inocência são constitucionais e merecem ser interpretados, bem como efetivados, conjuntamente. Ocorre que, em situações de conflito entre ambos, o intérprete e, em particular, o magistrado, deverá se pautar no princípio da proporcionalidade, para então aferir qual o direito deverá prevalecer no caso concreto.

A Constituição Federal do Brasil (CF), em seu artigo 227, dispõe como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, diversos direitos, inclusive de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Nesse sentido, o ECA contribui para a proteção integral da criança e do adolescente. Em seu artigo 5º, o ECA define: “Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.

No entanto, o que se observa da conjuntura atual é que o Estado Democrático de Direito ainda não desempenha, de forma efetiva, o dever de proteger, especialmente os vulneráveis, da violência sexual. Justamente por conta dessa desconformidade, é necessário que o direito ofereça políticas de prevenção, além da repressão.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 apresentou estatísticas referentes à exploração sexual e aos crimes ligados a exposição sexual por meio de fotografia, vídeo ou qualquer outro meio, conjuntamente ao crime de estupro de vulnerável. Foi a primeira vez que os dados relativos aos crimes de exploração e exposição sexual foram coletados, o que, de certa forma, representa precípua preocupação com o cenário da violência contra crianças e adolescentes.

Extrai-se do referido documento que, em 2021, no que tange ao estupro de vulnerável, foram 45.994 registros, sendo que, destes, 35.735, ou seja, 61,3%, foram cometidos contra meninas menores de 13 anos (um total de 35.735 vítimas). Em relação à exploração sexual, embora a pesquisa apresente o número de 733 casos registrados no ano de 2021, quando este número é confrontado com o mapeamento feito pela Polícia Rodoviária Federal e a Childhood Brasil, há nítido descompasso, pois, somente nas rodovias federais, foram identificados 3.651 pontos de exploração sexual infantil.

Concernente aos registros criminais de pornografia infantojuvenil, consignou-se o cômputo de 1.797 em 2021, num contexto propenso ao crescimento, uma vez que, a cada dia, as crianças e os jovens estão mais conectados pelas mídias sociais.

Soma-se a esse cenário a marca de 76,5% dos casos de estupro de vulnerável acontecerem em ambiente familiar:

“(…) é importante ressaltar que o abuso sexual contra o público infantojuvenil é uma realidade que insiste em perdurar ao longo do tempo. A grande dificuldade desse problema, porém, é dimensioná-lo, pois uma parte considerável dos delitos ‘ocorrem no interior dos lares, que permanecem recobertos pelo silêncio das vítimas’. O fato de a violência dentro dos lares ser reconhecida pelo Estado não significou a criação dessa violência. Em verdade, ela sempre existiu, mas permanecia no silêncio entre os familiares e na indiferença institucional. O que era para servir de apoio violentava ou ignorava” [1].

Em que pese a alta porcentagem, estima-se que menos de 10% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes sejam denunciados às autoridades competentes, de maneira que os números aqui apresentados representam pequeno recorte de uma realidade muito maior e complexa [2].

Sobre os casos submetidos ao Poder Judiciário, por força da importância da questão, merece destaque a dificuldade probatória nos crimes sexuais contra crianças, seja por força da rasa gama de vestígios geralmente encontrada em delitos dessa natureza, seja em decorrência da seriedade dos crimes em si.

Esse é o ponto de interseção que fomenta a segunda faceta da presente reflexão: o direito à presunção de inocência.

De modo geral, as decisões judiciais têm optado, nitidamente, por rebaixar os standards de prova, de modo a relativizar a presunção de inocência, embora se trate de uma garantia constitucional (artigo 5º, inciso LVII, da CF). Exemplo disso é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que a palavra da vítima possui especial relevância probatória em casos de crimes contra a liberdade sexual, desde que o relato esteja em consonância com as demais provas acostadas aos autos [3].

É compreensível que, na maioria das vezes, extraia-se da instrução processual tão somente a palavra da vítima. Fundamentalmente, quase não existem outras provas, como exames físicos, testemunhas diretas, fotografias, e outros tipos de elementos suficientes a corroborar a premissa acusatória. Igualmente se reconhece que o exercício de explícita racionalidade não é uma tarefa fácil. Porém, a dificuldade probatória não pode transpor a presunção de inocência [4].

De certa forma, sob a aparência de obviedade, a palavra da vítima, por si só, pode acarretar implicações práticas de grande relevância. Daí decorre o principal risco de diminuir o nível de suficiência probatória, pois há possibilidade de condenações injustas no campo do processo penal. Também em relação às crianças e adolescentes, a memória humana se sujeita ao esquecimento devido à passagem do tempo e é passível de ser alterada por força da inserção de informações posteriores [5].

Sob essa perspectiva, é razoável que qualquer criança possa relatar coisas que não aconteceram, como, por exemplo, situações de violência sexual. No vídeo intitulado A ficção da memória, Elizabeth Loftus reflete sobre a criação de falsas memórias, as quais podem, efetivamente, levar a condenações penais absurdas, graves e injustas [6].

Para que o processo se torne uma ferramenta de determinação dos fatos e, portanto, seja convertido à sua inerente atribuição de consequência justa, os atores jurídicos envolvidos devem se afastar de generalizações e conferir desenvolvimento à atividade probatória.

Caso contrário, elevar-se-á a falácia do argumentum ad ignorantiam, isto é, quando se sustenta uma proposição verdadeira simplesmente sobre a base de que não se demonstrou sua falsidade. Com razão, Perfecto Andrés Ibañez sinaliza:

“há algo de falaz na própria ideia de conferir a um resultado probatório, por si mesmo, existência objetiva. Isto porque o conteúdo probatório adquire existência objetiva com a atribuição de um determinado valor, dentro de um tecido de elementos de juízo em relação de mútua implicação” [7].

Em verdade, o debate sobre crimes sexuais praticados contra crianças é sério, causa inquietação e exige aprofundamento, sobretudo porque, normalmente, é visualizado em situações repetitivas, que tendem a se replicar não apenas com a vítima in casu, como também contra outras crianças e adolescentes.

Frente a esse desafio, a Lei nº 13.431/2017 criou condições para proteção de crianças e adolescentes vítima ou testemunha de violência, ainda que os mecanismos para prevenir e coibir a violência tenham sido indicados de forma ampla [8].

Extrai-se da lei avanços necessários à proteção do direito da criança e do adolescente submetidos ao sistema de justiça, como a criação dos institutos “escuta especializada” (artigo 7º) e “depoimento especial” (artigo 11) [9]. Outrossim, confere-se à vítima — ou testemunha — interlocução com profissionais devidamente capacitados para assisti-la.

Algumas técnicas podem contribuir ao aumento do número de testemunhos fiéis, verídicos e detalhados, a partir de vivências realmente ocorridas. Sobre o tema, ao longo do Episódio nº 15 do podcast Improvável [10], a psicóloga Lilian Stein pondera sobre a importância de proporcionar à criança um ambiente salutar, acolhedor, livre de distrações, no momento do relato.

Além disso, elementos como o curto espaço de tempo, a forma como a criança será ouvida pelo profissional, além dos estímulos recebidos e dos tipos de perguntas que serão feitas, são cruciais a conferir efeitos positivos e/ou prejudiciais ao testemunho. Ainda, a psicóloga revela que os chamados protocolos de entrevistas têm sido aperfeiçoados pela psicologia cognitiva, para fins de auxiliar a vítima a relatar com maior fidelidade e detalhamento o que ocorreu.

Especialmente sobre o dito “depoimento especial”, a Lei nº 13.431/2017 estabeleceu que referido procedimento reger-se-á por protocolos e, sempre que possível, será realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova judicial, garantida a ampla defesa do investigado.

Pontua-se que, caso a criança seja ouvida em sede de investigação criminal, ou seja, pela autoridade policial, respectivo testemunho não se confunde com mencionado “depoimento especial”, que possui caráter de prova; seria, portanto, uma a “escuta especializada”, que pode ser realizada por todos os integrantes da rede de proteção: escolas, conselhos tutelares, assistência social e pelos órgãos de segurança pública. Nada obstante, o momento inspira a mesma cautela implicada à fase judicial, em proteção à criança e adolescente.

Sob essa ótica, chama-se atenção à questão do contraditório. Com a gravação da “escuta”, por exemplo, esse ato poderá ser objeto de debate — sob o crivo do contraditório — em sede processual, de maneira que a investigação criminal corresponderá a um momento potencialmente epistêmico e não malferirá direitos e garantias individuais.

Se situações de violência sexual geram consequências deletérias para o desenvolvimento da criança, isso também ocorrerá em situações em que, efetivamente, não tenha havido a alegada violência.

Por tudo isso, exige-se responsabilidade jurídica, política e social. De um lado, o direito da criança; de outro, a presunção de inocência.


[1] STJ, REsp 1.958.862/MG (2021/0286061-4), 3ª Seção, j. 08/06/2022, p. 01/07/2022.

[2] TIC KIDS ONLINE, 2018. In: CHILDHOOD BRASIL. Cenário da infância e adolescência. Disponível em: <https://www.childhood.org.br/nossa-causa#numeros-da-causa>. Acesso em: 13 mar. 2023.

[3] STJ, REsp 1.699.051/RS (2016/0297321-4), relator ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 24/10/2017, p. 06/11/2017.

[4] IBAÑES, Perfecto Andrés. Valoração da prova e sentença penal. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2006, p. 110-111.

[5] LOFTUS, Elizabeth F. Planting misinformation in the human mind: A 30-year investigation of the malleability of memory. Learning & Memory, [s. l.], v. 12, n. 4, p. 361–366, 2005. Disponível em: <https://doi.org/10.1101/lm.94705>. Acesso em: 14 mar. 2023.

[6] A FICÇÃO DA MEMÓRIA. TED Talk por Elizabeth Loftus. 2015. 17min32seg. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_pX5lDQLejg>. Acesso em: 14 mar. 2023.

[7] IBAÑES, Perfecto Andrés. Valoração da prova e sentença penal. Rio de Janeiro, Ed. Lumen Juris, 2006, p. 83.

[8] “Inobstante a lei remontar a 2017, ainda existe incompreensão a respeito dos mecanismos nela veiculados. Há, ainda, especial confusão entre os institutos criados e a avaliação psicológica, que, embora não prevista expressamente na norma mencionada, é usada em processos penais como mais um elemento de convencimento e esclarecimento dos fatos.” (MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patricia; CADAN, Danielle. Escuta especializada, depoimento especial e avaliação psicológica. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-dez-03/questao-genero-escuta-especializada-depoimento-especial-avaliacao-psicologica>. Acesso em: 15 mar. 2023).

[9] Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade. Depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária.

[10] IMPROVÁVEL PODCAST. Ep. 15: o depoimento especial a partir da psicologia cognitiva. Locução de: Janaína Matida. Spotify, 2020. Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/4P0gOmgVZHLL22GB1TAz5P?si=95245e06d5f848fa>. Acesso em: 10 mar. 2023.

Publicado no Consultor Jurídico.

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