No instante em que nasce a persecução criminal, surgem inúmeras questões de cunho misto (material e processual) controversas. Dentre elas, se destaca a adequação processual de decisões judiciais proferidas no espectro da instrução probatória.
A prova penal consiste em “todo elemento existente, válido e eficaz, capaz de autorizar ou corroborar a atribuição do predicado ‘verdadeiro’ às hipóteses das partes processuais.”[1]. Em outra acepção, a prova diz respeito ao resultado da atividade probatória, identificando-se com o conhecimento que os meios de prova levaram ao juiz sobre a existência ou não de uma determinada premissa fática.[2]
A produção de elementos probatórios é um direito do investigado ou réu em seu favor, orientado pelos princípios da necessidade, liberdade probatória, pertinência, utilidade, legitimidade, iniciativa das partes, disponibilidade, contraditório e comunhão. Busca-se, a partir da prova, o estabelecimento do juízo racional sobre a ocorrência da hipótese acusatória ou da hipótese defensiva.
Em qualquer processo judicial, há uma intervenção decisiva das partes na produção de provas. Essa ingerência pode ser maior ou menor, exclusiva ou compartilhada com outros sujeitos (isto é, com o juiz), dependendo de cada ordenamento jurídico e de cada tipo de processo, mas deve ser oportunizada em qualquer caso.[3]
No entanto, o processo decisório pode ser marcado por certa intolerância do julgador que, convencido intimamente da culpa ou da inocência do réu, ou por qualquer outra razão de ordem subjetiva, desconsidera hipóteses e variáveis ainda não descobertas ou avaliadas.
As distorções involuntárias produzidas na atividade jurisdicional pela subjetividade do juiz (que efetivamente existe, em que pese a imposição de imparcialidade) resultam agravadas por três elementos: a) o primeiro, extrínseco à natureza da jurisdição, diz respeito à influência de convicções morais, políticas e pessoais e aos condicionamentos culturais e sociais exercidos sobre o magistrado pelo ambiente externo; b) o segundo, intrínseco à natureza da jurisdição, diz respeito à impossibilidade de refutação da narrativa fática e das leis por hipóteses interpretativas controladas; c) o terceiro, intrínseco à natureza da jurisdição, equivale a uma construção, pelo juiz, de sistema de esquemas interpretativos do tipo “seletivo”, que recorta os únicos elementos do fato que reputa penalmente “relevantes” e ignora todos os demais.[4]
Nesse sentido, Alexandre Morais da Rosa assinala que “os agentes previamente convencidos da culpa ou absolvição tendem a adotar mecanismos de manutenção da consonância, consistentes na ‘supervalorização’ da evidência/argumento irrelevante/insignificante e na ‘sobrevalorização’ da evidência robusta contrária, em face da busca do equilíbrio interno.”[5].
Dentre outras conjunturas, constata-se, em relação à produção de prova testemunhal no processo penal, uma inclinação de julgadores pátrios no sentido de suprimir ou restringir, no momento da instrução processual, determinado direito da defesa a oitiva das testemunhas arroladas em sede de resposta à acusação (art. 396-A do CPP).
Em cada procedimento há o momento processual adequado para o arrolamento de testemunhas, sob pena de preclusão. O direito subjetivo a oitiva configura-se pelo correto exercício desse ato.[6] Em matéria processual penal, o STJ possui jurisprudência apontando o momento da resposta à acusação como adequado para o arrolamento de testemunhas pela defesa, sob pena de preclusão, nos exatos termos do art. 396-A do CPP.[7]
Não obstante, registra-se entendimento doutrinário diverso, eis que o processo penal não se revestiria do rigorismo do processo civil, a ditar como definitivamente precluso o direito por não ter sido exercido tempestivamente, em observância ao princípio constitucional da ampla defesa. Ou seja, desde que a defesa justifique a prova requerida a destempo, poderá pleiteá-la.[8]
Portanto, arrolar testemunhas é um direito do réu, principalmente porque este meio de prova ainda é o mais utilizado para fins de demonstrar a insuficiência (ausência de probabilidade) do conjunto de evidências arrecadado pela acusação (ônus da prova). Ou seja, “a prova testemunhal confere meios de redução da assimetria de informações sobre a imputação, em movimentos contrários”.[9]
No processo penal, tem-se notado certa “inovação” procedimental na direção de se determinar à defesa, em momento anterior à audiência de instrução e julgamento, que se manifeste (insista) sobre o interesse na oitiva das testemunhas previamente arroladas.
Para além disso, exige-se, de forma fundamentada e expressa, que sejam expostos os fatos que se pretende provar com as oitivas, bem como se as testemunhas são presenciais do fato ou abonatórias. Ainda, vincula-se a ausência de posicionamento da defesa à desistência tácita das oitivas.
A tentativa de supressão desse direito, ancorado no exercício da ampla defesa (art. 5º, inc. LV, da CF), pontua-se, não encontra respaldo na razoável duração do processo ou nos meios que assegurem a celeridade de sua tramitação (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF), eis que ambas as garantias necessitam trilhar o mesmo caminho. De igual forma, ausente permissivo legal nesse sentido, incabível o reconhecimento de renúncia tácita à oitiva de testemunhas por parte da defesa.
Isso porque, conforme se depreende do art. 400, §1º, do CPP, é possibilitado ao juiz indeferir provas consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias em sede de audiência de instrução e julgamento. Não há obrigação legal de a defesa insistir e justificar, novamente e em momento prévio à audiência, a necessidade de uma prova que requereu tempestivamente. Inadmissível nesse momento processual impor-se à defesa a pormenorização acerca do cabimento e da relevância da oitiva de cada uma das testemunhas, eis que a própria legislação institui como propósito defensivo primordial a indicação de prova testemunhal por ocasião da resposta à acusação, diferindo a valoração da sua expressão, do seu mérito, somente para após a sua colheita.
Obrigação dessa natureza revela equívoco suscetível de retificação, sob pena de se convolar em nulidade processual insanável. A relevância ou não do conteúdo dessa prova somente poderá ser aferida após a sua realização, sendo impróprio qualquer juízo prévio de valor.
No julgamento do Habeas Corpus nº 0043477-49.2016.4.01.0000, o TRF1 considerou ser direito processual subjetivo das partes verem inquiridas as testemunhas arroladas, constituindo limitação ao dever de acusar e ao direito de defesa o estabelecimento de condicionantes ou explicações acerca do que se deseja provar.[10]
Nessa linha de intelecção, no julgamento do Habeas Corpus nº 419394/CE[11], o STJ consignou que tal condicionamento denota ilegalidade passível de correção. Embora no curso do processo penal seja facultado ao magistrado indeferir – de forma motivada – diligências protelatórias, irrelevantes ou impertinentes, a resposta do artigo 396-A do CPP reflete oportunidade processual de efetivo exercício da ampla defesa pelo réu, de contraposição aos elementos trazidos pela acusação na denúncia. A possibilidade de indicação de testemunhas nesse momento processual visa exatamente viabilizar ao réu a utilização de mecanismos de provas que servirão para alicerçar o quanto afirmado em sua defesa.
Desse modo, admitir que a ausência de reiteração e justificação da oitiva de testemunhas tempestivamente arroladas caracteriza renúncia tácita ao ato, traduz inovação processual, com franca violação do direito ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, garantias constitucionalmente asseguradas (art. 5º, incs. LIV e LV, CF). Ademais, se à acusação não se determina que justifique a necessidade da oitiva de testemunhas previamente arroladas na denúncia, em respeito ao princípio da paridade de armas, à defesa também não se deve determinar.
O ministro Gilmar Mendes pondera que o devido processo legal possui duas vertentes: a intrínseca e a instrumental. A primeira assegura ao indivíduo passível de coação não ser simplesmente manipulado, mas ser um partícipe do processo, contribuindo para a legitimidade da decisão. A segunda, que merece especial atenção para dimensionar a relevância do tema, é classificada “como um mecanismo adequado para assegurar que as leis sejam aplicadas de forma imparcial e equânime.”[12].
A instrumentalização processual prevista em lei necessita ser rigorosamente respeitada, considerando a finalidade do processo penal de aplicação da lei de maneira justa e correta. Assim, “a parte não pode ser surpreendida por fatos e circunstâncias a respeito dos quais não tenha tomado conhecimento, vale dizer, não saiba o porquê da decisão”[13], sob pena de violação aos princípios da ampla defesa e contraditório.
Gustavo Badaró considera que “o princípio da instrumentalidade das formas equivale ao princípio do prejuízo, pelo qual não se anula o ato se da atipicidade não decorreu prejuízo para a acusação ou para a defesa”[14]. Por outro lado, nos casos em que há prejuízo evidente, há também a nulidade, pois “em regra, o não cumprir a forma ou não observar os elementos que integram o ato processual típico causará prejuízo, sob pena de se considerar que o legislador estabeleceu uma forma ou elemento irrelevante e inútil para a consecução do fim que se pretende atingir”[15].
Badaró ainda aponta que a violação da forma legal caracteriza por si só a nulidade, sem sequer haver a necessidade de comprovação de prejuízo: “Se há um modelo ou uma forma prevista em lei, que foi desrespeitada, o normal é que tal atipicidade gere prejuízo.”[16].
Neste cenário, ainda parece possível a aplicação, mesmo que analogicamente, da teoria da perda de uma chance probatória no âmbito do processo penal. A perda de uma chance probatória consiste na interrupção antijurídica (omissão, desistência ou indeferimento) do dever de colheita/produção de todas as evidências identificáveis, tangíveis, possíveis e razoáveis, por parte dos agentes públicos, capaz de gerar a perda de uma oportunidade defensiva provável (pleno exercício da ampla defesa e do contraditório) sobre a “suficiência da premissa probatória” (standard de prova).[17]
Por todas essas razões, as garantias processuais de caráter intrinsecamente jurídico são aquelas regras do jogo judicial que disciplinam as atividades dos atores do processo para proibir o abuso e permitir-lhes, de fato e em condições de paridade, a busca mediante ensaio e erro, em que se articula a argumentação indutiva.[18]
A fim de evitar que comportamentos arbitrários correlatos se perpetuem, é importante que as partes – principalmente a defesa – promovam ações com o fito de demonstrar a (in)suficiência do conjunto probatório, especialmente sobre as provas possíveis, cuja colheita/produção era razoável, mas que tiveram o curso de obtenção interrompido.[19]
No Estado Democrático de Direito, o devido processo legal significa a exigência de um processo justo. Essa justiça se consubstancia no cumprimento daquilo que está formalmente preestabelecido em lei e no processo, de forma adequada e razoável, para, assim, atingir a sua finalidade primordial, que é a garantia de proteção aos direitos fundamentais.[20]
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REFERÊNCIAS
[1] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 371.
[2] BADARÓ, Gustavo. In: ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 371.
[3] FERRER-BELTRÁN, Jordi (tradução Vitor de Paula Ramos). Valoração racional da prova. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 56.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Vários tradutores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 46-48.
[5] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 41.
[6] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 453.
[7] Nesse sentido: STJ, RHC 139127/SE (2020/0326701-0), Relator: Ministro Reynaldo Soares Da Fonseca, p. 02/02/2021.
[8] CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal Comentado: Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 780.
[9] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 444.
[10] BRASIL, TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO, Habeas Corpus nº 0043477-49.2016.4.01.0000, Relator: Desembargador Federal Ney Bello, Terceira Turma, j. 25/10/2016, p. 24/03/2017.
[11] BRASIL, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Habeas Corpus nº 419394/CE (2017/0258546-7), Relator: Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. 05/12/2017, j 12/12/2017.
[12] CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira, (Coords.). Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, p. 460.
[13] Sanchs-Degenhart. KommGG, comente. III, 16, GG 103, p. 2022 apud NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 300.
[14] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos tribunais, 2018, p. 814.
[15] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos tribunais, 2018, p. 815.
[16] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos tribunais, 2018, p. 815.
[17] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 261.
[18] FERRAJOLI, Luigi (vários colaboradores; vários tradutores). Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.124.
[19] ROSA, Alexandre Morais. Guia do processo penal estratégico: de acordo com a teoria dos jogos e MCDA-A. Florianópolis: Emais, 2021, p. 265.
[20] CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz; LEONCY, Léo Ferreira, (Coords.). Comentários à constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, p. 461.