Publicado na seção Tendências/Debates da Folha de S.Paulo e no Consultor Jurídico

Por Cecilia Mello e Georges Abboud

A complexidade das novas tecnologias —como as plataformas digitais— e a agilidade com que as informações transitam livremente proporcionam aumento da pluralidade de opiniões, mas também impactam a qualidade das comunicações, levando à consolidação de um mercado de fake news.

Simultaneamente, Judiciário e Legislativo são confrontados com a incapacidade de pronta resposta do modelo tradicional de regulação, baseado na dicotomia lei/decisão. Há uma defasagem que aponta para a necessidade de modelos de regulação híbrida, somando-se a regulação tradicional a mecanismos claros e previsíveis de autorregulação dentro das plataformas sociais.

O projeto de lei 2.630/20 representa uma relevante oportunidade para o Brasil refletir sobre o atual ambiente digital, especialmente quanto ao enfrentamento de notícias fraudulentas e toda a dinâmica regulatória que envolve essa matéria. Contudo, recentes modificações, como a extensão que se quer dar à imunidade parlamentar, podem gerar prejuízos irreparáveis ao almejado marco legislativo.

Caracterizando como de “interesse público” as contas mantidas por agentes políticos e entidades da administração pública, o projeto impõe-lhes, em vários momentos, o dever de “accountability”. Veda, por exemplo, a destinação de verbas públicas em prol de discursos discriminatórios ou do cometimento de crimes contra o Estado democrático de Direito (art. 25, I e II) e impõe que as comunicações dessas figuras estejam sujeitas à mesma obrigação de transparência que recai, no modelo tradicional, sobre as comunicações oficiais (art. 26).

Nesse contexto de obrigações legítimas, o tratamento preconizado à imunidade parlamentar nas plataformas (art.22, §5º) é incompreensível e inconstitucional. Supor que determinada manifestação parlamentar deva ser mantida em alguma plataforma pela presunção de que esteja protegida pela imunidade parlamentar inviabiliza a autorregulação e dá tratamento diferenciado a uma classe de usuários que estaria liberada para disseminar fake news. Em suma, corre-se o risco de conferir às fake news status de prerrogativa parlamentar, impedindo a sua exclusão das redes pela autorregulação das plataformas, que é a via mais rápida.

A inclusão do termo “imunidade parlamentar”, sem ressalvas, ainda ignora a jurisprudência do STF sobre os próprios limites da imunidade, como na decisão que viabilizou a ação penal contra o então parlamentar Jair Bolsonaro por incitação ao crime de estupro e por prática do crime de injúria.

Portanto, se a imunidade parlamentar não pode ser subterfúgio para incitação ao crime e ao discurso de ódio, evidente que não pode a sociedade ficar exposta a notícias falsas tão somente porque parlamentares se utilizaram de plataformas para propagá-las. Afinal, no ambiente digital, a autorregulação é prioritária, de modo que fake news que, por exemplo, coloquem a vida de pessoas em risco (desinformação sobre vacinas) ou desacreditem instituições democráticas (desinformação sobre voto eletrônico) devem ser passíveis de controle e remoção imediatos. Não há, a despeito de serem praticadas por parlamentares, ou de resultarem de uma compreensão enviesada da imunidade parlamentar, qualquer justificativa para impedir os fundamentais mecanismos de controle de fake news.

A modificação, como proposta, sugere caráter absoluto à imunidade parlamentar que, embora essencial à democracia, deve ser vista dentro de um espectro maior de valores e direitos fundamentais protegidos pela Constituição.

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