Artigo publicado originalmente no LexLegal Brasil

Por Cecilia Mello, Flávia Pinto Amorim e Marcella Halah

Dia 20 de novembro de 2024: pela primeira vez, o Dia da Consciência Negra é comemorado no Brasil como feriado nacional. A partir da publicação da Lei nº 14.759/2023, sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a data passou a ser considerada como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra.

Liderança no Quilombo dos Palmares, Zumbi foi executado em 20 de novembro de 1695 por autoridades colonialistas; apesar disso, em razão da expressiva trajetória de luta e resistência negra do líder, a sua presença permanece firme na memória da sociedade brasileira.[1] A relevância da luta de Zumbi está diretamente ligada à compreensão de consciência negra, que, em breve definição, corresponde à percepção do povo negro sobre a necessidade da união de forças voltadas ao reconhecimento de seus valores não somente perante terceiros, como também de si mesmo.

Há cerca de 20 anos, o Presidente Lula também sancionou a Lei nº 10.639/2003, que incluiu ao currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Em específico, além da previsão do dia 20 de novembro como “Dia da Consciência Negra” no calendário escolar, dispôs-se que o conteúdo programático de estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, deverá incluir o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

É também do contexto da educação que se depreendem dois importantes pontos antagônicos: (i) a importância da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) – um dos mais expressivos mecanismos – senão o principal – de reparação histórica para o povo negro[2]; e (ii) a (infeliz) permanência de condutas racistas na sociedade brasileira.

Em primeira ótica, por meio da Lei de Cotas, busca-se assegurar que instituições federais de educação superior e técnica reservem, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes de escolas públicas ou comunitárias conveniadas ao poder público[3]. Tais vagas devem ser preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência.

Em razão da previsão do artigo 7º, em 10 anos da edição da lei foi realizada a revisão da política de cotas pela Lei nº 14.723/2023, de maneira a: (i) reforçar a reserva de vagas para estudantes que tenham cursado o ensino médio em instituições públicas ou conveniadas; (ii) estimular políticas de permanência dos estudantes cotistas nas instituições de ensino superior; (iii) aprimorar o acompanhamento das instituições sob a perspectiva de avaliação dos impactos e da eficácia da lei; e (iv) garantir a revisão periódica da política de cotas.

Ao longo dos últimos anos, há de se reconhecer os avanços promovidos pelas cotas raciais, notadamente em termos de justiça racial. De acordo com o Censo da Educação Superior 2022, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o número de ingressos na educação superior federal por meio de ações afirmativas aumentou 167% em dez anos.

A continuidade do impacto positivo na educação superior igualmente pode ser notada no Censo da Educação Superior 2023, recentemente publicado pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Inep. O resultado reforça o argumento de que as políticas públicas implementadas foram exitosas, pois “os estudantes que acessaram a educação superior federal por meio de cota em 2014 tiveram uma taxa de conclusão 10% maior que a de não cotistas, em uma década (2014 – 2023)”.

Muito embora as universidades privadas não estejam vinculadas ao sistema de cotas, não se pode negar a crescente implementação de outros mecanismos de inclusão como financiamentos e bolsas, observados critérios socioeconômicos e étnico raciais.

Ao longo dessa trajetória também nasceram políticas afirmativas notáveis no setor privado, a exemplo do que fez em 2020 o Magazine Luiza com a criação de vaga de emprego destinada exclusivamente a pessoas negras. Essa medida, a par de ter gerado calorosa discussão sobre a sua legalidade, acabou impulsionando tantas outras políticas afirmativas de inclusão racial na esfera de trabalho privado.

Não obstante a evolução legislativa e da implementação de programas de inclusão étnico raciais, o que se nota é que o racismo estrutural é uma doença difícil de ser extirpada. Episódios em escolas públicas e privadas; nos esportes; nas torcidas; no ambiente de trabalho e no contexto social são frequentes e se revestem, às vezes, de tamanha agressividade, que chegam a ser incompreensíveis.

A discriminação racial é intolerável e deve ser fortemente repelida pela sociedade. Trata-se de violência indesculpável que atinge o âmago mais profundo e caro da condição humana. Tipificado como crime desde 1989 (Lei nº 7.716), o racismo pode ser compreendido em sua dimensão social como uma discriminação que se projeta “para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade”[4].

Afora a plena compreensão acerca do conceito de racismo, fato é que, em completo descompasso com os avanços sociais, na atualidade, o crime é percebido nas mais variadas frentes e o entrave também é sentido quando nos deparamos com situações levadas ao Poder Judiciário.

Como breve exemplo, cita-se o julgamento criminal ocorrido em 2022 pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.[5] No caso analisado, um dos acusados disse à vítima “olhe a sua cor!” e outro a chamou de “macaco”. Mesmo diante da prática do crime de racismo, o Tribunal entendeu pela configuração do crime de injúria racial e considerou comprovado que a vítima teria provocado diretamente a injúria praticada pelos acusados, o que levou à isenção de pena, nos termos do art. 140, §1º, I, do Código Penal (quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria). Fica a impressão de que foram utilizados argumentos técnicos coesos, porém voltados a embasar uma decisão absolutória em atendimento às expectativas da sociedade.

Entretanto, para que a prestação jurisdicional se mostre efetiva a todo e qualquer cidadão, devem ser empregados meios aptos a assegurar um julgamento técnico e dissociado de instrumentos de conformação às debilidades sociais.

Eventos dessa natureza revelam que precisamos ir muito além de normas assecuratórias, na medida em que a compreensão da importância da igualdade humana necessita ser germinada desde a infância como um valor supremo de equilíbrio social. Isto, porque preceitos e normas pré-estabelecidos são insuficientes para garantir o desenvolvimento intelectual pleno e sereno de pessoas negras. O combate ao racismo deve ser constante e efetivo na missão de construir e consolidar um ambiente harmônico e digno a todos.

[1] GOMES, Flávio dos Santos; LAURIANO, Jaime; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Enciclopédia negra: biografias afro-brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 578-579.

[2] VAZ, Livia Sant’Anna; RIBEIRO, Djamila (Coord.). Cotas raciais. São Paulo: Jandaíra, 2022, p. 21-22.

[3] Redação dada pela Lei nº 14.945, de 2024.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão nº 26. Relator: Ministro Celso de Mello, 13 de junho de 2019, p. 06.

[5] TJMG (4ª Câmara Criminal). Apelação Criminal 10024191213214001, Relator: Des. Corrêa Camargo, j. 27.01.2022, p. 02.02.2022.

*Cecilia Mello é advogada e desembargadora federal aposentada. Mestre em direito pelo IDP e sócia-fundadora do Cecilia Mello Advogados. Flávia Pinto Amorim é advogada, mestranda em direito processual penal pela USP e sócia do Cecilia Mello Advogados. Marcella Halah é advogada, mestre em direito pela PUC-SP e sócia do Cecilia Mello Advogados.