Por Cecilia Mello e Luiza Cobra Gervitz

Artigo publicado na obra “Direito Médico: aspectos materiais, éticos e processuais“.

1. Breve histórico do sigilo médico

Aborto. Doenças sexualmente transmissíveis. Doenças crônicas. Doenças psiquiátricas. Doenças degenerativas. Ainda que se tente evitar, é inegável que algumas doenças, determinados procedimentos médicos e até mesmo alguns exames, carregam um estigma. Podem dizer respeito a uma situação sensível como um estupro, uma imprudência, uma falha genética, uma exposição indesejada e, portanto, uma parcela da vida que causa vergonha ou desconforto.

Pelo viés quase que invasivo na esfera particular do indivíduo e de sua família, as patologias, seus tratamentos e a própria investigação para obtenção de um diagnóstico devem ficar restritos, em princípio, à vida privada de cada um. Nessa linha, é consenso que a única forma de compatibilizar a atividade médica e preservar abertas as vias adequadas para um bom tratamento é manter a confiança na relação médico-paciente, respeitando-se o limite da porta do consultório para dentro. O médico, na qualidade de confidente necessário, tem o ônus de manter longe da curiosidade alheia as informações que obtiver enquanto realiza seu trabalho.

Não à toa, e por ter o médico amplo acesso a informações sensíveis, particulares ou mesmo familiares, o sigilo se consagrou como um princípio ético e, mais tarde, como obrigação jurídica. Logo, tão antigo quanto a própria medicina, o sigilo se estabeleceu como fundamento inerente à relação médico-paciente, sendo “uma das constantes antropológicas mais estabilizadas e irrenunciáveis da organização social1.

Enquanto, no Oriente, o Código de Hamurabi, datado de 1780 A.C., foi o precursor da construção da ética médica, no Ocidente, o juramento de Hipócrates, datado de 460 A.C., foi a base e continua sendo o primeiro orientador dos Códigos de Ética Médica. Conforme previsto no bojo do juramento de Hipócrates, uma das mais tradicionais obrigações morais assumidas pelo médico é justamente a discrição quanto às informações que este obtém no exercício de sua profissão, vide trecho a seguir que, diga-se de passagem, ainda repercute vivamente nos manuais de ética médica: “penetrando no interior das Famílias, meus olhos serão cegos e minha língua calará os segredos que me forem confiados”.

Considera-se pioneiro, na condição de código de ética moderno, o código de conduta elaborado em 1803 pelo médico, filósofo e escritor inglês Dr. Thomas Percival, que organizou um manual de boas práticas profissionais relacionadas a hospitais comuns e de caridade. Dada a sua repercussão, em 1847, a Associação Médica Americana elaborou uma adaptação que serviu de orientação aos médicos americanos, consagrando-se, assim, como primeiro código de ética adotado por uma associação profissional nacional.

No Brasil, havia, inicialmente, apenas um decreto datado de 1851, dispondo sobre o exercício legal da profissão. Elaborado pela então Academia Imperial de Medicina, esse decreto tratava, especialmente, de procedimentos para validação de remédios e diplomas médicos. Somente em 1867, a Gazeta Médica da Bahia publicou uma tradução portuguesa do Código de Ética Médica da Associação Médica Americana. No entanto, somente em 1944, foi editado o primeiro Código de Ética Médica oficialmente reconhecido pelo governo brasileiro. O código foi aprovado no IV Congresso Médico Sindicalista de 1944, mas só foi oficializado em setembro do ano seguinte com a publicação do Decreto-lei nº 7.955/1945, que o colocou em vigor e criou os Conselhos Federal e Regionais de Medicina. Muito embora este Decreto-lei nº 7.955/1945 tenha sido posteriormente revogado pela Lei nº 3.268/1957, sua importância suas marcas históricas são inegáveis, dado seu ineditismo em formalizar juridicamente o primeiro Código de Ética Médica brasileiro e criar órgãos relevantes à prática da medicina. Destaca-se, assim, que os códigos de ética médica, mesmo que em constante evolução para adaptação ao seu próprio tempo, continuam prevendo o sigilo como um dever de primeira ordem.

Todos os códigos possuíam um capítulo destinado somente às previsões relacionadas ao segredo/sigilo médico. O início do capítulo IX2 do Código de 1988 previa: “Art. 102. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente. Parágrafo único: Permanece essa proibição: a) Mesmo que o fato seja de conhecimento público ou que o paciente tenha falecido. b) Quando do depoimento como testemunha. Nesta hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento”. E a redação assim se manteve nos outros dois subsequentes, tanto no de 2010 (art. 73 do Capítulo IX), acrescendo-se somente mais uma hipótese de proibição de quebra de sigilo, qual seja: “na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal”, quanto no de 2018 (Capítulo I, inciso XI: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”. E o artigo 73 do Capítulo IX, nos mesmos termos do Código anterior de 2010).

A discrição, portanto, não é opção, mas é boa prática, quase que óbvia, esperada da profissão como forma de prestar um serviço honrado, condizente com o prestígio que lhe é conferido.

Pois bem, até este ponto, tratou-se do sigilo como uma questão puramente ética, passível de punição administrativa pelo Conselho de Medicina, de acordo com os procedimentos previstos no Código de Processo Ético-Profissional (Resolução CFM nº 2.145/20163). No entanto, é evidente que o impacto da quebra do sigilo médico não se restringe ao âmbito da esfera administrativa, mas apresenta consequências jurídicas de maior amplitude.

A ideia de privacidade e intimidade como um conceito jurídico surgiu em 1890, a partir da publicação do artigo de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, The Right to Privacy, nos Estados Unidos, na Harvard Law Review, cuja base seria justamente “o direito a estar só” (“the right to be let alone”) e se evidencia atualmente como um dos bens mais preciosos do indivíduo.

2. Tutela legal da intimidade

A tutela da privacidade/intimidade teve sua primeira reflexão jurídica relevante no direito norte-americano do final do século XIX, com o trabalho de Warren e Brandeis. Foi o nascimento de um novo direito com o prelúdio da definição de suas funções e seus limites. Mudou o enfoque da tradicional matriz proprietária, que era a base para a proteção de aspectos da vida privada até então, abrindo uma nova perspectiva para tutela da personalidade humana. O centro do trabalho de Warren e Brandeis era o próprio pensamento, não a liberdade de expressá-lo, necessariamente. A intenção era dar proteção à liberdade de pensar, sentir, sem restrições, em paz.

Mais adiante, no decorrer da década de 1960, sobretudo com influência de um importante aumento da circulação de informações e diante de uma mudança da relação dos indivíduos com os espaços públicos e privados, houve crescente interesse pela tutela da privacidade, no sentido de proteger as informações sigilosas do interesse de terceiros.

No Brasil, a positivação do direito à privacidade e à intimidade veio a se consolidar mais tardiamente, no final da década de 1980, com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e com a reformulação do Código Civil em 2002, sob o manto da proteção da “vida privada” e da “intimidade”. Não obstante os termos “vida privada” e “intimidade” não terem definição expressa na legislação, abrindo caminho para alguma subjetividade, não há dúvida de que a tutela da intimidade deve ser vista, antes de tudo, como o exercício de uma liberdade da pessoa, tanto na tradicional acepção de “estar só” quanto em uma perspectiva mais contemporânea de sigilo informacional.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/18), em vigor desde 18 de setembro de 2020, levando em conta a evolução informacional, faz uma distinção entre dois tipos de dados4: (i) dados pessoais, que são as informações relacionadas a pessoa natural identificada ou identificável, e, nessa categoria, são incluídos, por exemplo, nome, número de telefone, e-mail; e, (ii) dados sensíveis, os quais exigem padrões mais rígidos de tratamento, pois podem ser utilizados para fins discriminatórios. É nessa segunda categoria que se encaixam os dados relativos à saúde, entre outros, como origem racial ou étnica, vida sexual, biometria e dados genéticos. Os dados de saúde, portanto, são uma subespécie dos dados sensíveis, eis que se relacionam com o mais íntimo do ser humano, revelando, muitas vezes, suas escolhas, seus fardos, seus segredos.

Em um desenho legislativo da inviolabilidade da intimidade, tem-se a seguinte configuração: (i) em âmbito constitucional, o direito à privacidade/intimidade encontra-se consagrado, explicitamente, nos incisos X e XIV do artigo 5º da Constituição Federal5; (ii) em âmbito legislativo ordinário, há disposição específica no Código Civil, a se citar o seu art. 216; no Código de Processo Civil, o artigo 404, inc. IV7; no Código Penal8, mencionam-se os crimes de violação de segredo profissional e violação de sigilo funcional previstos nos artigos 154 e 325, respectivamente; e, (iii) em âmbito normativo destinado especialmente aos profissionais da saúde, o Código de Ética Médica editado pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução CFM nº 2.217/201), com ênfase ao Capítulo IX desse diploma.

Cumpre destacar que, embora haja um enfoque especial sobre a atividade profissional do médico, este não é o único técnico da área da saúde com o dever de manter sigilo e observar código de conduta especificamente em situação de contato com dados de pacientes, notadamente os mais sensíveis. Menciona-se, a título de exemplo, o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (Resolução COFEN nº 564/2017), que, no artigo 529 do seu anexo, aduz expressamente o dever de sigilo com contornos bastante parecidos àqueles impostos aos médicos. Não só, há regras de sigilo para os biólogos que são responsáveis pela análise de exames, como se depreende do art. 2010 do Código de Ética do Profissional Biólogo elaborado pelo Conselho Federal de Biologia.

3. Sigilo médico é um direito absoluto?

Intimidade e privacidade são direitos fundamentais expressamente reconhecidos pela Constituição e, assim sendo, gozam de proteção e garantias que definem a sua abrangência e relevância. Entretanto, visto que não existe apenas um direito fundamental, mas vários, e não há só uma realidade, mas várias, conforme as variáveis mudam, é relativamente comum que esses direitos sejam contrapostos a outros igualmente importantes.

Considerando-se, pois, a pluralidade de garantias fundamentais e a frequência do embate entre elas, questiona-se se há, entre elas, alguma que seja absoluta. Adianta-se que não. Isso porque, como pondera MARCUS OLIVEIRA, direitos “(…) não têm uma pré-existência, ou mesmo existência fora da sociedade humana, que quando compreendida desde uma perspectiva comparatística, é essencialmente plural, sendo que, por serem criados a partir dessa sociabilidade e condicionados em sua normogênese à própria facticidade histórica que lhes deram origem, são relativos, pois se ligam à pessoa humana não somente enquanto um ser-em-si, mas principalmente como ser-com: um ser que vive em comunidade11. Assim, se os direitos são inerentes aos homens e esses coexistem, seus direitos também necessitam coexistir.

Destaca-se, porém, que há autores que entendem que alguns direitos, pelos valores que carregam, nunca poderão ser suprimidos dentro de um juízo de proporcionalidade. Dentro dessa estrita gama que poderia existir, NORBERTO BOBBIO entende que é o caso de direitos análogos aos de não ser escravizado e não ser torturado: “(…) por ‘valor absoluto’ o estatuto que cabe a pouquíssimos direitos do homem, válidos em todas as situações e para todos os homens sem distinção. Trata-se de um estatuto privilegiado, que depende de uma situação que se verifica muito raramente; é a situação na qual existem direitos fundamentais que não estão em concorrência com outros direitos igualmente fundamentais. É preciso partir da afirmação óbvia de que não se pode instituir um direito em favor de uma categoria de pessoas sem suprimir um direito de outras categorias de pessoas. O direito a não ser escravizado implica na eliminação do direito de possuir escravos, assim como o direito de não ser torturado implica a eliminação do direito de torturar. Esses dois direitos podem ser considerados absolutos, já que a ação que é considerada ilícita em consequência de sua instituição e proteção é universalmente condenada12.

Sob outro prisma, uma ínfima gama de direitos poderia se inserir nessa categoria, e esses direitos, em tese, seriam incontrastáveis, sob pena de se tangenciar ou consubstanciar o próprio ilícito.

Sobreleva notar que o sistema constitucional brasileiro, ao dispor sobre os direitos e as garantias fundamentais, também delineia os limites do exercício desses direitos. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal posiciona-se firmemente pela inexistência de direitos e/ou garantias absolutos, “desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição”, como se depreende de voto paradigmático proferido pelo Ministro Celso de Mello:

“OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição.

O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.”13

Conclui-se, enfim, que o sigilo médico não é absoluto, a despeito de sua indubitável importância e seu forte resguardo legislativo, a se citar, nessa seara, além da tutela constitucional da privacidade (art. 5º, inc. X, da CF), a proteção concedida no Código Penal, artigos 154 e 26914; no Código de Processo Penal, artigo 20715; na Lei de Contravenções Penais, artigo 6616; e no Código de Processo Civil, artigos 388, inc. II, 404, inc. IV, e 448, inc. II17, entre outras.

Embora as hipóteses sejam restritas, há de fato situações em que o médico pode violar o sigilo e outras em que deve. O próprio CFM encampa essa mitigação: “[l]ogo, não há dúvidas de que o direito ao sigilo médico ou à intimidade privada podem sofrer certa mitigação, pois em determinadas situações previstas em Lei (em sentido estrito) admite-se eventual restrição mínima desses direitos fundamentais18.

Alerta importante diz respeito às notificações compulsórias, que, já se adianta, não constituem hipótese de violação ao dever de sigilo, mas verdadeira imposição legal de fazer. Não obstante haver discussão sobre a titularidade do prontuário médico, se do paciente, do hospital ou do próprio médico, há de se salientar que questionamentos dessa natureza são prescindíveis em casos de notificação compulsória. A Lei de Vigilância Sanitária, Lei nº 6.259/75, regulada pelo Decreto nº 78.231/76, impõe o dever de notificação de moléstias que possam implicar o isolamento e a quarentena dos infectados. Essas doenças, por seu turno, estão elencadas na Lista Nacional de Notificação Compulsória19, cuja mera probabilidade já é motivo de aviso. Assim, a notificação deve ser feita nos casos comprovados ou presumíveis, tanto pelo próprio paciente20 quanto por profissionais da saúde e estabelecimentos públicos e privados. Para o médico, inclusive, consiste em crime contra a saúde pública deixar de notificar, quando souber do possível ou confirmado diagnóstico, como prevê o artigo 269 do Código Penal21. Os outros profissionais da saúde não podem ser autores desse crime, haja vista a especialidade do tipo penal e a impossibilidade de analogia in malam partem no direito criminal. Embora a obrigação possa constar de normas regulamentadoras em relação a outros profissionais de saúde, o tipo penal optou por punir apenas o médico22. Por fim, destaca-se que o sigilo nesses casos deve ser mantido em relação a terceiros, de forma que tanto a autoridade sanitária receptora da informação quanto aquele que a reportou devem manter a devida discrição, o sigilo. Mais: a Resolução CFM nº 1.605/2000, nos casos de notificação compulsória, aduz, em seu artigo 2º, que deverá ser feita exclusivamente a comunicação, sem o envio do respectivo prontuário23.

Apesar de o sigilo médico não ser considerado absoluto, as exceções são poucas e apenas têm alicerce em uma justa causa. Segundo o Conselho Federal de Medicina: “A justa causa, abrange toda a situação que possa ser utilizada como justificativa para a prática de um ato excepcional, fundamentado em razões legítimas e de interesse coletivo, ou seja, uma razão superior relevante, ou um estado de necessidade. Como exemplo de justa causa, para a revelação do segredo médico, a situação de um paciente portador de uma doença contagiosa incurável de transmissão sexual e que se recusa a informar e proteger seu parceiro sexual do risco de transmissão ou ainda pior, que deliberadamente pratica o sexo de forma a contaminar outras pessoas. Também é permitida a revelação nos defeitos físicos ou doenças que ensejam erro essencial quanto à pessoa e levem à nulidade do casamento, e nos casos que não impliquem no processo do paciente24.

Dito isso, passa-se a explorar algumas hipóteses de validade da devassa do sigilo médico diante de determinadas situações.

3.1. Requisição judicial

De todas as possibilidades, a requisição judicial costuma ser aquela cujo franqueamento é interpretado como o menos polêmico, embora isso não signifique que o tema não comporte questionamentos.

O Novo Estatuto de Ética Médica, em seu artigo 89, dispõe expressamente sobre a possibilidade de divulgação em caso de requisição judicial:

“Capítulo X

DOCUMENTOS MÉDICOS

É vedado ao médico:

(…)

Art. 89. Liberar cópias do prontuário sob sua guarda exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente.

§ 1º Quando requisitado judicialmente, o prontuário será encaminhado ao juízo requisitante.

§ 2º. Quando o prontuário for apresentado em sua própria defesa, o médico deverá solicitar que seja observado o sigilo profissional.” (g.n.).

Atendendo à lógica proposta pelo próprio Código de Ética Médica, manifesta-se o CFM: “Com efeito, o CFM acredita que o conteúdo do prontuário médico só poderá ser revelado a terceiros se houver a autorização do paciente ou por determinação judicial, a que caberá fazer a divulgação e responsabilizar-se por eventual mácula à intimidade do paciente25.

Não obstante a quebra do sigilo médico em cumprimento de ordem judicial não guardar maiores dúvidas quanto à sua viabilidade, algumas observações são pertinentes. Uma vez franqueado acesso ao prontuário, o sigilo fica sob a responsabilidade do magistrado. E, da mesma forma, quando se constatar premente necessidade de apresentação do prontuário médico para defesa do próprio profissional, como consta do artigo 7º da Resolução CFM nº 1.605/2000:

“Art. 7º Para sua defesa judicial, o médico poderá apresentar a ficha ou prontuário médico à autoridade competente, solicitando que a matéria seja mantida em segredo de justiça.” (g.n.)

Muito embora a quebra do sigilo seja justificada por mandado judicial, discute-se acerca da extensão desse compartilhamento. Ou seja, a partir de uma ordem judicial, haveria necessidade de se compartilhar a íntegra do prontuário ou apenas as informações que fossem objeto das questões debatidas em juízo? A preocupação é genuína, uma vez que essa devassa irrestrita poderia expor dados e fatos da vida do paciente que absolutamente não guardassem qualquer relação com a demanda, provocando uma violação injustificada.

Visando esclarecer e conferir maior segurança a esse procedimento, a Resolução CFM nº 1.605/2000 previu, em seu artigo 4º, a interferência de um perito:

Art. 4º Se na instrução de processo criminal for requisitada, por autoridade judiciária competente, a apresentação do conteúdo do prontuário ou da ficha médica, o médico disponibilizará os documentos ao perito nomeado pelo juiz, para que neles seja realizada perícia restrita aos fatos em questionamento.

A previsão provocou reação adversa por parte do Ministério Público Federal de Santa Catarina, que propôs Ação Civil Pública (Processo nº 5009152-15.2013.4.04.7200/SC) com o objetivo de impugnar os dispositivos que previam a obrigatória atuação do perito judicial para a análise do prontuário médico (artigo 4º da Resolução CFM nº 1.605/2000 e artigo 89, § 1º, da Resolução nº 1.931/2009 – Antigo Código de Ética Médica). O Tribunal Regional Federal da 4ª Região se posicionou pela prescindibilidade de avaliação pericial prévia no que diz respeito à submissão do prontuário ao magistrado26.

O entendimento que vige, portanto, é no sentido da possibilidade de compartilhamento do prontuário médico, em caso de requerimento judicial. Entretanto, GUILHERME NUCCI questiona, com propriedade, a legalidade da apresentação do prontuário em face da normativa constante do Código de Processo Penal, que, em seu artigo 207, dispõe serem “proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho”.

O conteúdo do testemunho, cuja vedação é expressa, em tese seria exatamente o mesmo daquele presente no prontuário, restando evidente a contradição entre as disposições, como assinala o autor: “Dar depoimento em juízo ou enviar, por escrito, o mesmo texto sobre o qual seria falado à frente do juiz são situações idênticas. Se o médico não é obrigado a depor sobre seu paciente, não pode, também, mandar o prontuário/ficha clínica ao perito judicial, expondo seu paciente27.

A contraposição normativa entre a previsão constante de Resolução exarada pelo CFM e o Código de Processo Penal resultaria na prevalência do disposto no Código de Processo Penal e, portanto, na desnecessidade de entrega do material ao magistrado.

A discussão, no entanto, parece não ter um fundo prático efetivo, dado que o próprio Código de Ética Médica permite devassa das informações, a princípio sigilosas, nos casos de requisição judicial.

3.2. Investigações: Ministério Público e Polícia

Como visto, o sigilo médico não comporta muitas exceções, estando restritas ao disposto no artigo 89 do Código de Ética Médica: quando há expresso consentimento do próprio paciente ou representante legal e nos casos de requisição judicial, somando-se ainda as hipóteses em que a comunicação deve ser compulsória, sob pena de cometimento de crime previsto no artigo 269 do Código Penal28. Assim, dita o caput do artigo 73 do Novo Código de Ética Médica: “Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente” (g.n.).

Questiona-se, portanto, se é possível a exposição de prontuário médico nos casos de investigações comandadas pelo Ministério Público ou pela Polícia, sem o respectivo mandado judicial.

Nesse tocante, a alínea “c” do parágrafo único do artigo 73 do Código de Ética Médica expressamente veda que as informações reveladas pelos pacientes aos seus médicos, voluntária ou casuisticamente, possam ser usadas em seu desfavor em uma investigação criminal. O dispositivo é taxativo no sentido de que “na investigação de suspeita de crime, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal”.

Se a divulgação do prontuário médico tem contornos turbulentos na sua apresentação em juízo, maiores são os questionamentos quando se trata de requerimento emanado de investigação criminal sem a expedição do correspondente mandado judicial.

O CFM, em parecer recente e contemporâneo à epidemia de Covid-19, manifestou-se contrário à devassa de prontuário para fins de investigação criminal: “Entretanto, o que se sustenta é a impossibilidade da divulgação de resultados de exames, de forma a simplesmente garantir o direito à informação, se paciente (está ou não com a COVID19) sem motivo jurídico relevante, como uma investigação criminal, por exemplo29.

O entendimento do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – CREMESP também é na direção da inviolabilidade do prontuário médico por autoridades estranhas à judicial. Ao menos foi essa a conclusão constante do parecer exarado na Consulta nº 36.378/17, cujo escopo era examinar a possibilidade/necessidade de responder questionamento formulado pela autoridade policial sobre dados pessoais e clínicos de paciente que cometeu suicídio. Ponderou o CREMESP que, apesar de a Lei 12.830/13 outorgar à autoridade policial competência não apenas para conduzir investigações mas também para, no âmbito desse procedimento, coletar e requisitar “perícia, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos”, as informações estariam protegidas pela inviolabilidade constante do inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, só sendo viável a exposição de dados pessoais com a correspondente ordem judicial. Assevera ainda que, se absolutamente necessários e improcedentes os recursos cabíveis, o ideal deslinde seria a apresentação de prontuário aos peritos que, com conhecimento técnico específico, conseguiriam identificar as informações essenciais ao processo em curso30.

Deve-se pontuar que, apesar de forte posicionamento dos Conselhos Médicos em desfavor do franqueamento de acesso ao prontuário fora das hipóteses de requisição judicial, precedido inclusive de avaliação pericial, as decisões dos Tribunais nem sempre se coadunam com essa interpretação mais restritiva. A título de exemplo, citamos as decisões a seguir, respectivamente, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que negou acesso aos dados médicos por entender ausente justa causa para quebra do sigilo, e do Tribunal do Estado do Mato Grosso, que, em contraposição à primeira, concluiu que o sigilo poderia ser quebrado até mesmo pelo Ministério Público:

“SIGILO MÉDICO PROFISSIONAL. Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público. Quebra do sigilo. Tutela de urgência. Requisição de prontuário médico de vítima de pretensas sevícias praticadas policiais em diligência. Falecimento da vítima. Requisição para instrução de inquérito civil. Admissibilidade da quebra do sigilo. Inexistência de afronta ao art. 5º, X, da CF ou à ética médica. Acesso ao prontuário médico que pode contribuir para elucidar se há nexo entre fatos que teriam ocorrido durante a diligência policial e o evento morte. Interesse público que prevalece no confronto com o caráter sigiloso do prontuário. Tutela de urgência concedida. Pretensão ao fornecimento de todos os documentos médico-hospitalares relacionados ao atendimento de vítimas de infrações penais, erros médicos ou de deficiência dos serviços de saúde. Pedido genérico, de caráter normativo, com efeitos para o futuro. Falta de individualização do episódio que justifique a quebra do sigilo e a necessidade da medida. Inadmissibilidade. Observância do art. 5º, X, da CF e princípios da persecução penal. Art. 129, VI, da CF, art. 8º da LC 75/93 e art. 26 da Lei 8625/93 que não autorizam pedido genérico, tal como o formulado nos autos. Agravo parcialmente provido.”31

“PROCESSUAL CIVIL – RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL COM REEXAME NECESSÁRIO DA SENTENÇA – REQUISIÇÃO DE PRONTUÁRIOS MÉDICOS – MINISTÉRIO PÚBLICO – PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL – SIGILO MÉDICO NÃO ABSOLUTO – INTERESSE COLETIVO PREVALECENTE SOBRE O PRIVADO – DEVER DE DISPONIBILIZAÇÃO – DESPROVIMENTO – SENTENÇA RATIFICADA. Os prontuários médicos dos pacientes são protegidos pelo sigilo profissional, e o seu conteúdo a eles pertence, contudo, o sigilo não é absoluto, sendo admitida sua requisição pelo Ministério Público, com vistas a instruir procedimentos investigativos ou a ação penal. O interesse coletivo, no caso, deve se sobrepor ao particular, sem que isso configure violação a direito constitucionalmente assegurado, pois o direito de requisição insere-se na prerrogativa do Ministério Público.”32

Parece-nos nítido que o tema ainda divide opiniões em sentidos opostos, dado que a avaliação da justa causa demanda um juízo de proporcionalidade a ser realizado pelo médico. Referido juízo condiz com o sopesamento dos danos ocasionados pela divulgação diante daqueles proporcionados pela manutenção do sigilo. Nessa linha, um guia para a definição de justa causa encontra-se nas recomendações constantes da Resolução nº 05/84 editada pelo CRM-PR:

“1) São casos constitutivos do dever legal, as seguintes circunstâncias:

a) Os casos de doenças infecto-contagiosas (sic) de notificação compulsória ou de outras de declaração obrigatória (doenças profissionais, toxicomania, etc.);

b) As perícias jurídicas;

c) Quando o médico está revestido de função em que tenha de se pronunciar sobre o estado do examinado (serviços biométricos, junta de saúde, serviços de companhias de seguros, etc.), devendo os laudos e pareceres ser nesses casos limitados ao mínimo indispensável, sem desvendar, se possível, o diagnóstico;

d) Os atestados de óbito;

e) Quando se tratando de menores, nos casos de sevícias, castigos corporais, atentados ao pudor, supressão intencional de alimentos;

f) Os casos de crime, quando houver inocente condenado e o cliente, culpado, não se apresentar à justiça, apesar dos conselhos e solicitações do médico;

g) Os casos de abortamento criminoso, desde que ressalvados os interesses do cliente;

§ – É aconselhável o uso, em código da nomenclatura internacional de doenças e causas de morte.

2) São casos constitutivos de ‘justa causa’:

a) Quando o paciente for menor e se tratar de lesão ou enfermidade que exija assistência ou medida profilática por parte da família ou envolva responsabilidade de terceiros, cabendo ao médico revelar o fato aos pais, tutores ou outras pessoas sob cuja guarda ou dependência estiver o paciente;

b) Para evitar o casamento de portador de defeito físico irremediável ou moléstia grave transmissível por contágio ou herança, capaz de por em risco a saúde do futuro cônjuge ou de sua descendência, casos suscetíveis de motivar anulação de casamento, em que o médico esgotará primeiro, todos os meios idôneos para evitar a quebra do sigilo;

c) Quando se tratar de fato delituoso previsto em lei ou a gravidade de suas consequências sobre terceiros, crie para o médico o imperativo de consciência para revelá-lo a autoridade competente.”

A ausência de um entendimento firme sobre o assunto, obviamente, causa insegurança jurídica quanto à legalidade de se franquear acesso, ao Ministério Público e aos agentes policiais, de dados íntimos para fins de investigação, remanescendo o tema inconclusivo e sujeito a avaliações sobre as condições fáticas de cada caso.

Cabe, por fim, destacar que, nos casos de morte violenta, a tendência é de que seja aceita a quebra de sigilo. No entanto, o prontuário deverá ser avaliado por um perito médico, que selecionará as informações pertinentes às investigações conduzidas, consoante Resolução CFM nº 1.779/0533.

3.3. Quebra de sigilo em relações privadas

Se a quebra de sigilo em investigações públicas, coordenadas por autoridades do Ministério Público e da Polícia, comportam uma série de dúvidas, em investigações privadas alguns contornos são melhores definidos. Isso porque, afora as obrigações legais de reporte de doença e requisição judicial, as hipóteses que toleram algum tipo de devassa são bem restritas.

Em caso de morte de paciente, costuma-se aplicar o entendimento de que o sigilo do prontuário pode ser quebrado em favor de seus herdeiros e cônjuge/parceiro34, seguindo-se a lógica aplicada para reconhecimento dos herdeiros contida no artigo 1.829 do Código Civil:

“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III – ao cônjuge sobrevivente;

IV – aos colaterais.”

Tal entendimento se assenta na Recomendação nº 3/14 do Conselho Federal de Medicina, editada em resposta ao ajuizamento de ação civil pública no Estado de Goiás35, cuja ementa é do seguinte teor:

“Recomendar aos profissionais médicos e instituições de tratamento médico, clínico, ambulatorial ou hospitalar no sentido de: a) fornecerem, quando solicitados pelo cônjuge/companheiro sobrevivente do paciente morto, e sucessivamente pelos sucessores legítimos do paciente em linha reta, ou colaterais até o quarto grau, os prontuários médicos do paciente falecido: desde que documentalmente comprovado o vínculo familiar e observada a ordem de vocação hereditária; b) informarem aos pacientes acerca da necessidade de manifestação expressa da objeção à divulgação do seu prontuário médico após a sua morte.”

No entanto, em relação a terceiros, o sigilo deve permanecer resguardado mesmo após o falecimento do paciente, conforme parágrafo único do artigo 73 do Novo Código de Ética Médica, já colacionado anteriormente.

Por outro lado, em relação a pacientes vivos, tende-se a concluir que qualquer investigação privada que esbarre em dados médicos e, portanto, sigilosos a estes somente poderá ter acesso na hipótese de o médico vislumbrar a ocorrência de dano ao próprio paciente ou a terceiro interessado, caso a informação não seja revelada. Na linha da Resolução nº 05/84 editada pelo CRM-PR36, o Parecer nº 06/17 do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia37, exarado no Processo-Consulta 06/2017, dispôs acerca da obrigatoriedade de informar diagnóstico de HIV a parceiro, caso o próprio paciente não se voluntarie a fazê-lo: “[é] permitido ao médico, a quebra de sigilo por justa causa (no caso, por proteção à vida de terceiros), quando o indivíduo demonstrar claramente que não informará sua condição de infectado pelo HIV ao(à) parceiro(a) sexual, seja qual for a categoria de positividade, devendo o médico após prestar esclarecimentos, proceder à comunicação sobre o fato”.

Entretanto, vale dizer que, mesmo na hipótese de dano ao próprio paciente, a devassa encontra reservas. Por exemplo, quando envolver determinados distúrbios psiquiátricos ou dependência química, como restou consignado no Parecer CRM – MG Nº 211/2019 – Processo-Consulta nº 190/201938: “‘Se o médico pode fornecer a familiar (avós, pais, filhos, netos ou irmãos) do paciente, relatório constando diagnóstico ou hipótese diagnóstica e tratamento realizado, quando paciente se recusar a comparecer novamente à consulta médica, devido a quadro de dependência química e ou de psicose desestabilizados’, entende-se que o sigilo médico não deve ser violado, ou seja, deve ser preservado nos moldes estabelecidos pelo CFM e resoluções e pareceres já apresentados na fundamentação desta Consulta”(g.n.).

No caso dos absoluta ou relativamente incapazes, propicia-se acesso aos prontuários aos tutores ou curadores, quando o incapaz necessitar de cuidados e orientações para além daquilo provido em consulta. Nesse caso, e havendo reconhecimento de maus-tratos, o médico não só tem o poder como também o dever de comunicar às autoridades competentes para apuração de eventual cometimento de crime39.

Em relação a violação de sigilo de crianças e adolescentes, as linhas divisórias são tênues. Um caso que enaltece a delicadeza do tema está contido no Processo-Consulta CFM nº 03/15, no Parecer CFM nº 55/1540, que trata do sigilo sobre avida sexual de pacientes menores de 18 anos e avalia a existência, ou não, do dever médico de: (i) acolher e orientar o paciente, prescrevendo métodos contraceptivos; e (ii) reportar aos responsáveis o noticiado, sob pena de prejudicar a relação de confiança criada entre médico e paciente. A conclusão a que chegou o CFM nessa consulta foi a seguinte: nos casos de crianças com quatorze anos incompletos, há a obrigação de o médico orientar o incapaz e informar aos pais, consignando-se que qualquer relação com menor de quatorze anos consubstancia crime de estupro de vulnerável, nos termos do artigo 217-A do Código Penal41. Entretanto, nos casos de adolescentes maiores de quatorze anos e com dezoito anos incompletos, prevalece o direito ao sigilo. Não obstante, caso o paciente permita, prefere-se que haja a participação e o auxílio dos responsáveis.

Na linha do raciocínio construído, resta evidenciado que são raras as exceções permissivas da devassa do sigilo médico em relações privadas, mesmo quando envolvam pais e filhos, dada a importância concedida ao direito ao sigilo dentro da ética médica.

4. Conclusão

De tudo quanto exposto, valiosa a lição do saudoso jurista NÉLSON HUNGRIA:

“A vontade do segredo deve ser protegida, ainda quando corresponda a motivos subalternos ou vise a fins censuráveis. Assim, o médico deve calar o pedido formulado pela cliente para que a faça abortar, do mesmo modo que o advogado deve silenciar o confessado propósito de fraude processual do seu constituinte, embora, num e noutro caso, devam os confidentes recusar sua aprovação ou entendam de desligar-se da relação profissional. Ainda, mesmo que o segredo verse sobre fato criminoso deve ser guardado. Entre dois interesses colidentes – o de assegurar a confiança geral dos confidentes necessários e o da repressão de um criminoso – a lei do Estado prefere resguardar o primeiro, por ser mais relevante. Por outras palavras: entre dois males – o da revelação das confidências necessárias (difundindo o receio em torno destas, com grave dano ao funcionamento da vida social) e a impunidade do autor de um crime – o Estado escolhe o último, que é o menor.”42

Repleto de razão o ilustre jurista, porque o consultório médico, o hospital e o laboratório são verdadeiros confessionários do paciente, onde a intimidade ganha imenso relevo. O direito à preservação da intimidade é verdadeiro pressuposto para um bom desempenho dessas atividades, e a sua violação pode ser fatal não só ao relacionamento entre médico e paciente, mas também, pior: ao próprio tratamento.

Ainda que se trilhe o caminho da inexistência de direitos absolutos, não há como se negar o peso do direito ao segredo médico. Com acerto, pois, constata-se a escassez de hipóteses que comportam a infringência desse dever assumido pelos chamados de “confidentes necessários”.


Referências bibliográficas

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BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 60.

BULAWSKI, Claudio Maldaner. Acesso ao prontuário médico do paciente: uma análise comparativa entre os casos ordinários de solicitação e o direito constitucional à privacidade. Revista da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA). V. 13. Rio Grande do Sul, 2018.

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__________. Conselho Federal de Medicina. Parecer nº 05/2020. p. 14. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 07 de maio de 2020. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/5>. Acessado em: 07 de dez 2020.

__________. Conselho Federal de Medicina. Parecer nº 55/2015. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 16 de dez. de 2015. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2015/55>. Acessado em 07 de nov. 2020.

__________. Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. Parecer CREMEB nº 06/2017. Salvador: Conselho Regional de Medicina, 4 de ago. de 2017. Disponível em: <http://www.cremeb.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Par-Cremeb-06-2017.pdf>. Acessado em 07 de nov. de 2020.

__________. Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais. Parecer CRMMG nº 211/2019. Conselho Regional de Medicina do Estado, Belo Horizonte, 06 de nov. de 2019. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/MG/2019/211_2019.pdf>. Acessado em 07 de nov. de 2020.

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__________. Juízo Federal da Seção Judiciária de Goiás – Ação Civil Pública n.º 26798-86.2012.4.01.3500, Juiz: Dr. Leonardo Buissa Freitas, DJ: 08/04/16.

__________. Manual de Orientação Ética e Disciplinar. Volume 1. 2ª. edição revista e atualizada. Comissão de Divulgação de Assuntos Médicos. Florianópolis: Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina, 2000.

__________. Supremo Tribunal Federal. MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/1999, DJ 12/5/2000.

__________. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso – APL: 00091482420158110003 MT, Relator: MÁRCIO VIDAL, Data de Julgamento: 18/11/2019, PRIMEIRA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO, Data de Publicação: 22/11/2019.

__________. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 2049454-22.2017.8.26.0000, Relator: Antonio Carlos Villen, Data de Julgamento: 04/09/2017, 10ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 06/09/2017.

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NUCCI, Guilherme. Limites do sigilo entre médico e paciente para fins penais. Conjur. Publicado em: 05/05/2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mai-05/guilherme-nucci-limites-sigilo-medico-fins-penais>. Acessado em: 20/06/2020.

OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier de. Existem direitos absolutos? Direitos humanos, autonomia do direito e a esfera do indecidível. Revista de Direito da Cidade, vol. 11, nº 1. 2019. ISSN 2317-7721. pp. 736-759.


Notas

1 ANDRADE, Manuel da Costa. Direito Penal Médico: SIDA, testes arbitrários, confidencialidade e segredo, Coimbra, 2004, p. 172. apud ANDRADE, Andreia Costa. O segredo médico: dos fundamentos Hipocráticos às Inovações Genéticas. Revista Digital Data Venia [p. 33-62]. Portugal. Direito Biomédico. Ano 4 [2016]. N.º 06. p. 36.

2 Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina, 1988. Disponível em: <https://portal.cfm.org.br/etica-medica/codigo-1988/>. Acesso em 25 de maio de 2020.

3 Código de Processo Ético-Profissional: RESOLUÇÃO CFM Nº 2.145/2016. Conselho Federal de Medicina: Brasília, Conselho Federal de Medicina, 2016. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2016/2145>. Acesso em 25 de jun. de 2020.

4 Art. 5º Para os fins desta Lei, considera-se:

I – dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável;

II – dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;

III – dado anonimizado: dado relativo a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento;

IV – banco de dados: conjunto estruturado de dados pessoais, estabelecido em um ou em vários locais, em suporte eletrônico ou físico;

V – titular: pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento;

(…).

5 Constituição Federal:

Art. 5º. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(…)

X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

(…)

XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

6 Código Civil:

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

7 Código de Processo Civil:

“Art. 404. A parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa se:

(…)

IV – sua exibição acarretar a divulgação de fatos a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo.”

8 Código Penal:

Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de três meses a um ano, ou multa de um conto a dez contos de réis.

Parágrafo único. Somente se procede mediante representação.

(…)

Art. 325. Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.

§ 1º Nas mesmas penas deste artigo incorre quem:

I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública;

II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito.

§ 2º Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

9 Art. 52. Manter sigilo sobre fato de que tenha conhecimento em razão da atividade profissional, exceto nos casos previstos na legislação ou por determinação judicial, ou com o consentimento escrito da pessoa envolvida ou de seu representante ou responsável legal.

§ 1º Permanece o dever mesmo quando o fato seja de conhecimento público e em caso de falecimento da pessoa envolvida.

§ 2º O fato sigiloso deverá ser revelado em situações de ameaça à vida e à dignidade, na defesa própria ou em atividade multiprofissional, quando necessário à prestação da assistência.

§ 3º O profissional de Enfermagem intimado como testemunha deverá comparecer perante a autoridade e, se for o caso, declarar suas razões éticas para manutenção do sigilo profissional.

§ 4º É obrigatória a comunicação externa, para os órgãos de responsabilização criminal, independentemente de autorização, de casos de violência contra: crianças e adolescentes; idosos; e pessoas incapacitadas ou sem condições de firmar consentimento.

§ 5º A comunicação externa para os órgãos de responsabilização criminal em casos de violência doméstica e familiar contra mulher adulta e capaz será devida, independentemente de autorização, em caso de risco à comunidade ou à vítima, a juízo do profissional e com conhecimento prévio da vítima ou do seu responsável.

10 Art. 20. O Biólogo deve manter a privacidade e confidencialidade de resultados de testes genéticos de paternidade, de doenças e de outros procedimentos (testes/ experimentação/ pesquisas) que possam implicar em prejuízos morais e sociais ao solicitante, independentemente da técnica utilizada. Parágrafo único: Não será observado o sigilo profissional previsto no caput deste artigo, quando os resultados indicarem riscos ou prejuízos à saúde humana, à biodiversidade e ao meio ambiente, devendo o profissional comunicar os resultados às autoridades competentes.

11 OLIVEIRA, Marcus Vinícius Xavier de. Existem direitos absolutos? Direitos humanos, autonomia do direito e a esfera do indecidível. Revista de Direito da Cidade, vol. 11, nº 1. 2019. ISSN 2317-7721. p. 748 – grifo nosso.

12 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, tradução de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 61 – grifos nossos.

13 Brasil, Supremo Tribunal Federal. MS 23.452/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/1999, DJ 12/5/2000.

14 Código Penal:

“Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tenha ciência, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem.

Pena – detenção de três meses a um ano ou multa de um a dez contos de réis.

Parágrafo único. Somente se procede mediante representação.

(…)

Art. 269. Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória. Pena – detenção de seis meses a dois anos, e multa.”

15 “Art. 207. São proibidos de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigados pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho.”

16 “Art. 66. Deixar de comunicar à autoridade competente:

(…)

II – crime de ação pública, de que teve conhecimento no exercício da medicina ou de outra profissão sanitária, desde que a ação penal não dependa de representação e a comunicação não exponha o cliente a procedimento criminal.

Pena – multa, de trezentos mil réis a três contos de réis.”

17 Código de Processo Civil:

“Art. 347. A parte não é obrigada a depor de fatos:

(…)

II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.

Parágrafo único. Esta disposição não se aplica às ações de filiação, de desquite e de anulação de casamento.

Art. 363. A parte e o terceiro se escusam de exibir, em juízo, o documento ou a coisa:

(…)

IV – se a exibição acarretar a divulgação de fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão devam guardar segredo;

(…)

Art. 406. A testemunha não é obrigada a depor de fatos:

(…)

II – a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar sigilo.”

18 Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM nº 5/2020. p. 14.

19 Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública. Disponível em: <https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2020/prt0264

_19_02_2020.html>. Acessado em 20/06/2020.

20 Art. 7º São de notificação compulsória às autoridades sanitárias os casos suspeitos ou confirmados:

I – de doenças que podem implicar medidas de isolamento ou quarentena, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional.

II – de doenças constantes de relação elaborada pelo Ministério da Saúde, para cada Unidade da Federação, a ser atualizada periodicamente.

§ 1º Na relação de doenças de que trata o inciso II deste artigo será incluído item para casos de “agravo inusitado à saúde”.

§ 2º O Ministério da Saúde poderá exigir dos Serviços de Saúde a notificação negativa da ocorrência de doenças constantes da relação de que tratam os itens I e II deste artigo.

Art. 8º É dever de todo cidadão comunicar à autoridade sanitária local a ocorrência de fato, comprovado ou presumível, de caso de doença transmissível, sendo obrigatória a médicos e outros profissionais de saúde no exercício da profissão, bem como aos responsáveis por organizações e estabelecimentos públicos e particulares de saúde e ensino a notificação de casos suspeitos ou confirmados das doenças relacionadas em conformidade com o artigo 7º.

21 Omissão de notificação de doença

Art. 269. Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

22 NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Penal: parte especial: arts. 213 a 361 do Código Penal, 3ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2019.

23 Art. 2º Nos casos do art. 269 do Código Penal, onde a comunicação de doença é compulsória, o dever do médico restringe-se exclusivamente a comunicar tal fato à autoridade competente, sendo proibida a remessa do prontuário médico do paciente.

24 Parecer Consulta CFM nº 24.292/00, grifo nosso.

25 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer nº 05/2020. p. 14. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 07 de maio de 2020. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/5>. Acessado em: 07 de dez 2020, grifos nossos.

26 DIREITO ADMINISTRATIVO. RESOLUÇÕES DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA Nº 1.605/2000 E 1.931/2009, ARTS. 4º E 89, § 1º, RESPECTIVAMENTE. PREVISÃO, NOS ATOS NORMATIVOS, DA DISPONIBILIZAÇÃO DO PRONTUÁRIO MÉDICO E DA FICHA MÉDICA, QUANDO REQUISITADOS JUDICIALMENTE NO ÂMBITO DE PROCESSO JUDICIAL, APENAS AO MÉDICO NOMEADO PERITO JUDICIAL. DISPOSIÇÃO SOBRE PROVA PROCESSUAL EM DESCONFORMIDADE COM A LEI PROCESSUAL. ILEGALIDADE DOS ATOS NORMATIVOS. 1. Os preceitos contidos no art. 4º da Resolução nº 1.605/2.000 e no art. 89, § 1º, da Resolução nº 1.931/2009, ambas do Conselho Federal de Medicina, ao preverem que o prontuário e a ficha médica requisitados judicialmente sejam disponibilizados apenas ao médico nomeado perito judicial, pretendem estabelecer disciplina sobre prova processual contrária ao que dispõem as leis processuais, que asseguram o acesso direto do juiz à prova, sem a necessidade da intervenção de intérpretes ou mediadores (CPC-73, art. 131; CPC-2015, art. 371; CPP, art. 234). 2. Existe legislação federal própria que disciplina o tratamento processual de informação sigilosa trazida para o âmbito dos processos judiciais, que estabelece ampla regulamentação sobre os cuidados a serem conferidos aos processos que contenham dados sigilosos, bem como sobre a responsabilização daqueles que descuidem do sigilo legal, como são os casos de informações advindas de interceptações telefônicas, da quebra do sigilo bancário, do sigilo fiscal, daquelas relacionadas a direito de família e aos direitos de crianças e adolescentes, e assim por diante. Em todas essas áreas há informações legalmente protegidas, que importam dever de sigilo, e elas são corriqueiramente levadas para o bojo de processos judiciais. Em nenhuma dessas áreas se cogitou de designar um intérprete (um agente bancário, um auditor fiscal, um assistente social) que, como censor, filtre as informações que, conforme seu entendimento e as orientações advindas do órgão corporativo de sua classe profissional, deva ou não repassar ao juiz. A figura do perito judicial existe para auxiliar o juiz com conhecimentos técnicos que este não detém, e não para selecionar quais informações possam ou não ser disponibilizadas ao magistrado. 3. Os atos normativos do Conselho Federal de Medicina acabam por limitar a atuação do juiz no âmbito do processo judicial, sem amparo nas leis que disciplinam a matéria, do que resulta inequívoca ilegalidade, a indicar a procedência da ação, em que se pretende afastar sua aplicação. Dessa forma, a demanda se resolve no campo da legalidade, sendo desnecessária a declaração da inconstitucionalidade dos inquinados atos normativos. 4. Apelação provida. – TRF-4 – AC: 50091521520134047200 SC 5009152-15.2013.404.7200, Relator: Sérgio Renato Tejada Garcia, Data de Julgamento: 09/02/2017, Quarta Turma. – grifos nossos.

27 NUCCI, Guilherme. Limites do sigilo entre médico e paciente para fins penais. Conjur. Publicado em: 05/05/2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mai-05/guilherme-nucci-limites-sigilo-medico-fins-penais>. Acessado em: 20 de jun. de 2020.

28 Art. 269. Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

29 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer nº 05/2020. p. 14. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 07 de maio de 2020. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2020/5>. Acessado em: 07 de dez 2020, grifo nosso.

30 “Sob nossa ótica e, s.m.j., o ‘motivo justo’ deve ser avaliado e caracterizado pelo profissional médico e não por nenhuma autoridade; querer justificar a requisição de um prontuário médico apenas pelo fato de existir uma investigação criminal em andamento, seria atribuir a um terceiro não partícipe da relação médico-paciente a análise sobre a sua quebra excepcional, em situação não abarcada pelo dever legal, mas embasada apenas por um ato administrativo ou judicial e, quanto a este aspecto, destacamos o artigo 5º, II, da Constituição Federal que estabelece a máxima segundo a qual ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.’

(…)

Significa afirmar que a investigação criminal, por intermédio do inquérito policial, disciplinada pelo Código de Processo Penal, é muito mais abrangente do que a estabelecida pela Lei 12.830/13, exceto pelo termo ‘requisição’ utilizado no § 2º do artigo 2º.

Tal condição, s.m.j., não implica numa ampliação de poderes ao que já estava estabelecido pela Lei Processual Penal, mas apenas ratifica como sendo o Delegado de Polícia a autoridade investida dos poderes necessários à condução do inquérito policial; todavia, tal conclusão não é suficiente em hipótese alguma para lhe conferir os poderes necessários a requisitar documentos protegidos pelo sigilo profissional e mais, sem fundamentar a necessidade de tal juntada à investigação, na fase de inquérito.

(…)

Diante de todo o exposto, é forçoso concluir que a Lei nº 12.830/13 não conferiu aos Delegados de Polícia, no exercício de seu mister, poderes suficientes a requisitarem documentos protegidos pelo segredo médico e pelo direito à intimidade, cabendo à Lei regulamentar tais quebras, assim como no âmbito do sigilo fiscal, bancário e telefônico, aplicando-se ao caso a Resolução CFM 1605/00.

Em consonância com os apontamentos acima articulados na Nota Técnica nº 001/2014-DEJ, verifica-se que as questões ventiladas através da presente consulta devem ser analisadas à luz do disposto no artigo 73 e 89, ambos do Código de Ética Médica (anexo à Resolução CFM nº 1.931/09)” – Parecer na Consulta nº 36.378, aprovado na reunião da câmara técnica de medicina legal, realizada em 10.08.2017. Aprovado na reunião da câmara de consultas, realizada em 01.09.2017. Homologado na 4.796ª reunião plenária, realizada em 05.09.2017.

31 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 2049454-22.2017.8.26.0000, Relator: Antonio Carlos Villen, Data de Julgamento: 04/09/2017, 10ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 06/09/2017.

32 BRASIL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso – APL: 00091482420158110003 MT, Relator: MÁRCIO VIDAL, Data de Julgamento: 18/11/2019, PRIMEIRA CÂMARA DE DIREITO PÚBLICO E COLETIVO, Data de Publicação: 22/11/2019.

33 A Resolução nº. 1.779/05 do Conselho Federal de Medicina dispõe: “Art. 1º O preenchimento dos dados constantes na Declaração de Óbito é da responsabilidade do médico que atestou a morte.

Art. 2º Os médicos, quando do preenchimento da Declaração de Óbito, obedecerão às seguintes normas:

(…)

3) Mortes violentas ou não-naturais:

A Declaração de Óbito deverá, obrigatoriamente, ser fornecida pelos serviços médico-legais.

Parágrafo único. Nas localidades onde existir apenas 1 (um) médico, este é o responsável pelo fornecimento da Declaração de Óbito” – grifo nosso.

34 Foi declarado inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que estabelece diferenças entre a participação do companheiro e do cônjuge na sucessão dos bens, no julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) 646721 e 878694, ambos com repercussão geral reconhecida.

35 BRASIL. Juízo Federal da Seção Judiciária de Goiás – Ação Civil Pública n.º 26798-86.2012.4.01.3500, Juiz: Dr. Leonardo Buissa Freitas, DJ: 08/04/16.

36 Brasil. Conselho Regional de Medicina do Estado do Paraná. Resolução CRM-PR nº 05/1984. Curitiba: Conselho Regional de Medicina, 1984. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/PR/1984/5>. Acessado em 07 de dez. de 2020.

37 Brasil. Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia. Parecer CREMEB nº 06/2017. Salvador: Conselho Regional de Medicina, 4 de ago. de 2017. Disponível em: <http://www.cremeb.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Par-Cremeb-06-2017.pdf>. Acessado em 07 de nov. de 2020.

38 Brasil. Conselho Regional de Medicina do Estado de Minas Gerais. Parecer CRMMG nº 211/2019. Conselho Regional de Medicina do Estado, Belo Horizonte, 06 de nov. de 2019. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/pareceres/MG/2019/211_2019.pdf>. Acessado em 07 de nov. de 2020.

39 Código Penal:

Maus-tratos

Art. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa.

§ 1º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

§ 2º Se resulta a morte:

Pena – reclusão, de quatro a doze anos.

§ 3º Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos.

40 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer nº 55/2015. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 16 de dez. de 2015. Disponível em: <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2015/55>. Acessado em 07 de nov. 2020.

41 Estupro de vulnerável

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime.

42 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. 6. São Paulo: Forense, 1980. p. 262.

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