Notícia publicada originalmente no LexLegal Brasil
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) consolidou um entendimento que pode mudar o rumo de milhares de processos em todo o país: o chamado estelionato afetivo. A prática ocorre quando alguém usa um relacionamento falso para obter vantagens financeiras. Esse tipo de fraude pode gerar condenação criminal e também indenização civil por danos materiais e morais.
Em decisão recente, a Corte manteve a condenação de um réu que induziu sua parceira a transferir cerca de R$ 40 mil sob falsas promessas de um futuro em comum. Além da devolução do valor, a Justiça determinou o pagamento de R$ 15 mil por danos morais, reconhecendo que a vítima sofreu não apenas um prejuízo econômico, mas também emocional.
O julgamento reforça que a Justiça brasileira vem tratando com maior rigor fraudes praticadas em ambientes de intimidade, sobretudo em aplicativos de namoro e redes sociais, espaços cada vez mais explorados por golpistas.
A base legal: entre o Direito Penal e o Direito Civil
Do ponto de vista jurídico, o estelionato afetivo encontra amparo direto no artigo 171 do Código Penal, que tipifica o estelionato como “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”.
Já no campo civil, a responsabilidade é fundamentada nos artigos 186 e 927 do Código Civil, que tratam da obrigação de reparar o dano causado por ato ilícito. Nesse contexto, o ardil emocional — ou seja, a manipulação dos sentimentos da vítima para obter dinheiro — se equipara a qualquer outra forma de fraude.
Na prática, significa que a vítima pode ajuizar ação de indenização exigindo tanto a devolução dos valores transferidos (danos materiais) quanto compensação pelos abalos emocionais sofridos (danos morais).
Como os tribunais têm julgado
Embora o STJ seja responsável por uniformizar a interpretação da lei, tribunais estaduais já vinham reconhecendo a possibilidade de indenização em casos semelhantes. Em geral, as cortes exigem provas consistentes de que houve dolo — ou seja, a intenção clara de enganar — e de que o prejuízo financeiro decorreu diretamente da manipulação afetiva.
Mensagens trocadas entre as partes, promessas de casamento, viagens ou aquisição de bens em comum, bem como comprovantes de transferências bancárias, têm sido considerados provas decisivas. Em alguns casos, testemunhos de amigos e familiares que acompanharam a relação também ajudam a demonstrar a fraude.
A criminalista Cecilia Mello, especialista em direito penal e juíza federal aposentada, destaca que a tipificação específica do crime pode trazer mais segurança jurídica e facilitar a punição dos golpistas. “A legislação atual enquadra esse tipo de golpe no estelionato genérico, o que pode dificultar a persecução penal. A criação de um tipo penal específico reconhece a gravidade do crime e amplia os mecanismos de proteção às vítimas”, explica Cecilia.
Para os advogados, a tendência é que, com o respaldo do STJ, os julgamentos se tornem mais uniformes e céleres, ampliando a proteção das vítimas.
“O chamado estelionato afetivo deixou de ser apenas uma discussão acadêmica e passou a ser uma realidade nos tribunais. É um avanço importante, mas cabe ressaltar que não basta alegar ter sido enganado: é preciso apresentar provas concretas de que houve dolo, engano e prejuízo financeiro. Em relacionamentos virtuais, mensagens, comprovantes de transações e até testemunhas podem ser decisivos para o êxito da ação”, explica o advogado Tony Santtana, especialista na área.
Diante de suspeita de golpe, a vítima deve adotar algumas medidas práticas, de acordo com os especialistas:
- Guardar registros de conversas em aplicativos de mensagens ou redes sociais;
- Manter os comprovantes de transferências bancárias e eventuais promessas feitas pelo parceiro;
- Buscar orientação jurídica especializada o quanto antes;
- Avaliar, junto ao advogado, a viabilidade de pedir indenização tanto material quanto moral.
Analistas em segurança digital alertam que os aplicativos de namoro, como Tinder, Bumble e outros, têm se tornado terreno fértil para esse tipo de crime. Os golpistas criam perfis falsos, geralmente com fotos de terceiros, e elaboram narrativas convincentes para envolver emocionalmente as vítimas.
Muitas vezes, o golpe se desenvolve ao longo de meses: o criminoso conquista a confiança da vítima, simula intenções sérias de relacionamento e, em determinado momento, pede empréstimos ou transferências emergenciais. A justificativa pode variar — problemas de saúde, dificuldades financeiras, falsas oportunidades de negócios —, mas o resultado é sempre o mesmo: a vítima acaba arcando com valores que dificilmente serão recuperados sem intervenção judicial.
O estelionato afetivo não atinge apenas pessoas idosas ou com pouca familiaridade digital. Profissionais de diversas áreas, em busca de relações estáveis, têm se tornado alvos de quadrilhas especializadas que estudam comportamentos e exploram vulnerabilidades emocionais.
A importância da decisão do STJ
O reconhecimento do estelionato afetivo como ato ilícito indenizável pelo STJ representa um marco para o Direito brasileiro. A decisão amplia o alcance da proteção judicial a contextos que antes eram vistos como parte exclusiva da esfera privada.
Para os juristas, a mensagem é clara: relacionamentos, reais ou virtuais, não podem ser usados como escudo para práticas fraudulentas. O afeto, quando manipulado para obtenção de vantagem econômica, deixa de ser apenas um problema moral e se transforma em uma questão jurídica, sujeita a punição.
Além da repressão judicial, especialistas destacam a importância da educação digital e emocional. Campanhas de conscientização podem reduzir a vulnerabilidade das pessoas a esse tipo de golpe. Entre as recomendações estão:
- Desconfiar de pedidos de dinheiro feitos por parceiros que ainda não tiveram contato presencial;
- Buscar informações sobre a pessoa em outras redes sociais e verificar se as fotos são reais;
- Conversar com amigos e familiares antes de realizar qualquer transferência financeira;
- Denunciar perfis suspeitos diretamente nos aplicativos e, em casos mais graves, procurar a polícia.
O avanço desse tipo de julgamento mostra também como a Justiça brasileira está atenta às novas formas de criminalidade surgidas com a digitalização da vida social. Se antes o estelionato estava mais associado a golpes bancários ou falsificação de documentos, hoje se estende ao campo das relações interpessoais mediadas pela tecnologia.
Do ponto de vista civil, o reconhecimento do dano moral traz um efeito pedagógico, desestimulando a prática e incentivando as vítimas a denunciar. Já na esfera penal, reforça a aplicação do artigo 171 do Código Penal, que prevê penas de 1 a 5 anos de prisão, além de multa.
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