Reportagem publicada originalmente no LexLegal Brasil
Neste sábado, dia 28 de junho, o mundo celebra o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. A data remonta à rebelião de Stonewall Inn, em Nova York, em 1969, quando frequentadores do bar — um dos poucos espaços seguros para pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans — enfrentaram a violência policial. O episódio deu origem às marchas que, ano após ano, ganharam as ruas em forma de Paradas do Orgulho, símbolo de resistência, diversidade e luta por cidadania.
No Brasil, o movimento também tem raízes históricas. Em plena ditadura militar, o restaurante Ferro’s Bar, em São Paulo, tornou-se um marco da resistência lésbica. A primeira parada oficialmente reconhecida aconteceu em 1997, reunindo duas mil pessoas na Avenida Paulista. Em 2025, o número de participantes saltou para 4 milhões, tornando a Parada de São Paulo a maior do mundo.
Apesar da visibilidade crescente, os direitos da população LGBTQIA+ continuam sendo garantidos, sobretudo, por decisões do Poder Judiciário. Do ponto de vista do Poder Legislativo, a pauta avançou praticamente nada no Brasil desde a redemocratização.
O hiato legislativo e a dependência judicial
Em um país marcado por violações de direitos e violência contra pessoas LGBTQIA+, a ausência de legislação específica preocupa. O Brasil é um dos países que mais mata pessoas trans no mundo. Segundo o Grupo Gay da Bahia, em 2024, uma pessoa LGBTQIA+ foi assassinada a cada 30 horas.
Essa realidade, segundo especialistas, reflete um vácuo legal. Tirando o Estatuto da Pessoa com Deficiência ou a Lei Maria da Penha, não existe lei federal que reconheça a existência LGBTQIA+. Isso significa que os direitos fundamentais da população — como nome social, casamento homoafetivo, criminalização da homofobia e transfobia — foram conquistados por meio de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), e não por leis aprovadas no Congresso.
O STF reconheceu, por exemplo, em 2011, a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Em 2019, o tribunal equiparou a homofobia e a transfobia aos crimes de racismo, com base na Lei nº 7.716/1989. No entanto, essas decisões não substituem a criação de políticas públicas permanentes, uma vez que não há leis que obriguem o Estado a agir sistematicamente nessa área.
Sem leis, a população trans (uma das mais atingidas pela falta de políticas públicas) fica vulnerável à concepção ideológica do Poder Executivo. “Para a população trans, a distância entre os direitos reconhecidos e a realidade cotidiana é profunda. Embora a retificação de nome e gênero em documentos tenha sido facilitada, muitos cartórios – especialmente fora dos grandes centros — ainda impõem obstáculos, por desconhecimento ou preconceito. No SUS, a falta de preparo e a discriminação de profissionais dificultam o acesso a tratamentos hormonais, cirurgias e apoio psicológico”, afirma Felipe Caon, sócio do Serur Advogados.
Isso significa que a existência de ações afirmativas, programas de inclusão ou políticas de saúde e educação depende da boa vontade dos governos de turno, e não de um compromisso institucionalizado pela legislação.
Orgulho, cidadania e existência com dignidade
Para os especialistas, orgulho LGBTQIA+, portanto, não é apenas celebração: é também denúncia da exclusão jurídica e reivindicação de direitos básicos. O Dia do Orgulho é mais do que a demarcação pública de uma existência. A cidadania plena, para essa população, envolve existir com dignidade: acesso à educação, saúde, trabalho e segurança. E isso ainda é uma promessa distante.
Uma pesquisa do Datafolha realizada em maio de 2024 revela uma disparidade significativa entre representatividade e inclusão no mercado de trabalho brasileiro. Apesar de 7% da população se autodeclarar parte da comunidade LGBTQIA+, apenas 4,5% das vagas com carteira assinada são ocupadas por pessoas desse grupo.
O cenário se torna ainda mais crítico para pessoas trans, que compõem somente 0,38% das ocupações formais no país. Apesar do país ter uma das menores taxas de desemprego dos últimos anos, o índice de inclusão de pessoas trans no mercado formal permanece baixo.
No mercado de trabalho, a exclusão é alarmante: segundo a ANTRA, cerca de 90% das mulheres trans recorrem à prostituição por falta de oportunidades, e apenas 4% têm emprego formal. Mulheres trans negras, em especial, sofrem com a interseção entre transfobia, racismo e violência estrutural.
“Os desafios são inúmeros, começando pela ausência de dados. Todas as estatísticas que temos vêm de levantamentos informais feitos por ONGs, por clipagens de notícias jornalísticas ou relatórios de organizações do terceiro setor. Não temos IBGE, não temos nenhum órgão formal que colete dados estatísticos sobre a população trans brasileira. E isso é muito grave, porque sem dados, a gente não existe. E se não existimos, não há políticas públicas, não há orçamento — o que é gravíssimo”, afirma Victória Dandara Toth Rossi Amorim, formada com a primeira turma de cotistas da Faculdade de Direito da USP e a primeira mulher trans brasileira declarada a fazer mestrado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
Para a advogada, essa falta de dados governamentais é uma lacuna no país. “A verdade é que fomos deixadas para trás por todos os espectros políticos. Não houve mudanças substanciais. Claro, há uma política LGBTQIA+ do governo Lula, e isso tem valor. Mas não vemos um governo que realmente coloque a população trans no centro de sua política, de forma afirmativa. Hoje, por exemplo, não temos nem uma portaria atualizada que defina e defenda a saúde das pessoas trans no Brasil”, diz.
Amorim define as políticas públicas para pessoas trans no país como ações pontuais, resultantes da mobilização de ativistas. “Falta investimento, falta continuidade. Isso tudo contribui para o ciclo de precarização e marginalização”, avalia.
Ocupar as ruas, ocupar o Estado
As paradas do orgulho seguem sendo um dos instrumentos mais potentes de visibilidade política. Essa característica festiva das manifestações é, para os que apoiam a causa, a expressão de cultura, resistência e desejo de existir.
Iniciativas como o documentário Quando Ousamos Existir, dirigido por Cláudio Nascimento e Marcio Caetano, buscam preencher o vazio deixado pela história oficial. Com mais de 200 entrevistas, o filme resgata o protagonismo de lideranças como João Antônio Mascarenhas, ativista que participou da Assembleia Constituinte e que teve seu legado ignorado.
A urgência da cidadania legislada
O grande desafio é o reconhecimento do Estado brasileiro, por meio do Poder Legislativo, da necessidade de legislar sobre o direito de existir. A falta de leis específicas mantém a cidadania LGBTQIA+ como uma condição precária e vulnerável, dependente de decisões judiciais e políticas de governo, em vez de garantias estruturais e universais.
“Embora o Poder Legislativo, hoje majoritariamente conservador, apresente constantes ameaças de retrocesso, o nosso sistema constitucional impede sejam extirpados direitos fundamentais já concedidos e consolidados. Assim, vejo esse aspecto mais como uma guerra política e de restrição de implementação de políticas públicas específicas, igualitárias e inclusivas”, avalia a criminalista e desembargadora federal aposentada Cecilia Mello, sócia do escritório Cecilia Mello Advogados.
Entre janeiro e 25 de junho de 2025, o Brasil registrou 57 projetos de lei com conteúdo favorável aos direitos da população LGBTQIA+, superando os 43 de caráter contrário. Os dados, levantados pela Observatória, ferramenta da Agência Diadorim, indicam uma diferença de mais de 30% a favor das propostas pró-direitos. A maioria desses projetos foi apresentada nas assembleias legislativas estaduais (45), enquanto a Câmara dos Deputados somou 12 iniciativas e o Senado não registrou nenhuma proposição pró no período.
As propostas favoráveis abordam principalmente o combate à discriminação (9 projetos), o uso do nome social (7), políticas de saúde (6), inclusão no esporte, ações afirmativas e medidas simbólicas. Por outro lado, os projetos com teor contrário concentram-se em barrar o processo transexualizador, restringir o reconhecimento de gênero e impor censura escolar.
Um tema emergente na agenda conservadora é a oposição às cotas para pessoas LGBTQIA+, com cinco projetos em 2025 buscando impedir a reserva de vagas em concursos públicos e instituições de ensino para pessoas trans, travestis, intersexuais e não binárias — todos de autoria de parlamentares do PL.
Segundo Paulo Malvezzi, coordenador de pesquisa da Observatória, o cenário revela uma disputa política constante, ainda que os dados mostrem mais proposições pró-direitos. “Mesmo com mais propostas pró, a presença constante de projetos anti-LGBTQIA+ mostra que ainda estamos diante de uma disputa política intensa. O campo dos direitos segue sendo um espaço de embate.” Ele também destaca o papel das assembleias estaduais, que concentram tanto avanços quanto retrocessos: “Isso mostra como a agenda LGBTQIA+ tem ganhado capilaridade e aparece com força nos debates regionais. Não basta olhar apenas para o Congresso Nacional.”
Outro ponto de atenção destacado no levantamento é o avanço de projetos contrários no Senado, tradicionalmente menos ativo na pauta LGBTQIA+. Em 2025, cinco proposições de teor anti-direitos foram registradas na Casa. O senador Jorge Seif (PL-SC) apresentou dois projetos que visam restringir o acesso de pessoas trans a banheiros e ao esporte feminino. Já o senador Cleitinho (Republicanos-MG) é autor de três propostas que buscam definir sexo apenas por critérios biológicos e proibir atletas trans em competições femininas. “Esse dado pode indicar uma mudança de postura na Casa, que precisa ser acompanhada de perto”, alerta Malvezzi.
Para Cecília Mello, na medida que o Congresso detém um poder sobre o orçamento, amparado nas emendas, não há qualquer priorização em relação à população LGBTQIA+. “A baixa representatividade no Parlamento impacta ainda mais, porque a priorização desses direitos fica no espectro de interesse de poucos. Quanto às dificuldades diárias, exceção feita a ausência de políticas mais abrangentes da área de saúde, a população LGBTQIA+ conta com as proteções e medidas necessárias. Os obstáculos ocorrem mesmo por conta do preconceito”, afirma Mello.
A subrepresentação LGBTQIA+ no Parlamento aprofunda esse cenário. “Com poucas exceções – como Erika Hilton e Duda Salabert -, falta voz legislativa capaz de impulsionar políticas públicas efetivas. Isso resulta em lentidão na aprovação de leis antidiscriminatórias, ausência de fiscalização sobre a implementação de direitos já garantidos e avanço de projetos regressivos, como o Escola Sem Partido”, avalia Felipe Caon.
STF X Congresso
Segundo os especialistas consultados por LexLegal, a atuação do Supremo Tribunal Federal tem gerado reações polarizadas, refletindo o abismo entre avanços sociais e resistências conservadoras no Brasil. Organizações de direitos humanos e movimentos LGBTQIA+ reconhecem o STF como ator fundamental na consolidação de conquistas históricas, como a equiparação da homofobia e transfobia ao crime de racismo (ADOs 26 e 27) e o direito à autodeterminação de gênero sem necessidade de cirurgia ou decisão judicial (Provimento 73 do CNJ). Essas decisões não apenas garantiram direitos, mas forçaram o Legislativo a se posicionar sobre pautas há anos paralisadas.
“Em contrapartida, setores conservadores do Congresso e grupos religiosos acusam o STF de extrapolar suas funções, alegando ativismo judicial. Essa tensão se materializa em iniciativas como a PEC 5/2021, que visa limitar os poderes da Corte, e em projetos como o Estatuto da Família, que tenta restringir o conceito de família à união entre homem e mulher”, enfatiza Caon. Para o advogado, o risco de retrocessos é concreto: “mesmo com efeito vinculante, decisões do STF podem ser fragilizadas por mudanças na sua composição ou por pressões políticas, sobretudo em cenários de avanço conservador”, diz.
“Vivemos em um país onde, há mais de 16 anos, as estatísticas mostram que somos a nação que mais mata pessoas trans. E nenhuma política de segurança pública foi tomada para mudar isso. O Congresso é conivente, é cúmplice e também responsável por essa realidade. É um projeto político”, finaliza Amorim.
Sem leis que reconheçam e protejam a diversidade de identidades de gênero e orientações sexuais, a cidadania LGBTQIA+ no Brasil continua marcada pela vulnerabilidade. “Embora o STF atue como freio à inércia legislativa, a dependência exclusiva da via judicial torna os direitos LGBTQIA+ vulneráveis. A consolidação dessas conquistas exige não apenas sua defesa no Judiciário, mas uma transformação cultural e política mais ampla, com maior representação nas instâncias de poder e mobilização social permanente”, diz Caon.
Enquanto o Congresso não legisla sobre o direito de existir, o orgulho segue ocupando espaços públicos como forma de reivindicação. Mais do que celebração, é afirmação de direitos e resposta a uma lacuna institucional ainda aberta.