Em nota, grupo afirma que recebeu ‘com preocupação e indignação a manifestação’ do desembargador Guilherme Strenger
Um grupo de advogados de São Paulo divulgou uma nota em defesa às declarações do ministro Rogerio Schietti Cruz, do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
Em webinário sobre habeas corpus realizado pelo Conjur e pelo IDP, Schietti acusou o Tribunal de Justiça de SP de “simplesmente ignorar, ou melhor, desconsiderar” jurisprudências do STF (Supremo Tribunal Federal) e do STJ.
Schietti criticou o tribunal paulista, citando como exemplo penas para crimes de tráfico de menor monta e prisões preventivas que são contrárias à jurisprudência do STF e do STJ.
O ministro foi criticado pelo presidente da Seção de Direito Criminal do TJ-SP, desembargador Guilherme Strenger. Em nota, ele disse não haver desrespeito aos julgados dos tribunais superiores e que, em matéria criminal, “não há espaço para emprego de fórmulas genéricas, desconectadas da realidade do caso concreto”.
O grupo de advogados afirma que recebeu “com preocupação e indignação a manifestação” de Strenger.
“Imperioso salientar que a independência dos magistrados, assegurada constitucionalmente, existe justamente com o fim de proporcionar o desenvolvimento da judicatura de forma livre e imparcial; para, se assim for necessário, controlar o arbítrio estatal, mesmo que isso signifique ir contra a opinião pública”, diz a nota.
“Tal independência, por isso, não pode sustentar, ainda que admitido o livre convencimento motivado, transgressões à Constituição Federal, às leis federais e à jurisprudência de tribunais superiores, sob pena de macular a prestação jurisdicional, e contribuir para o agravamento da insegurança jurídica”, segue o texto.
O documento é assinado pelos advogados André Fini Terçarolli, Cecilia Mello, Flavio Grossi, Marcelo Egreja Papa, Marcelo Savoi e Pollyana Soares.
“Os advogados que subscrevem este manifesto, protestando a favor da coerência e integridade do sistema jurídico, bem como pelo respeito às garantias individuais de todos os acusados em processo penal, vem a público externar seu apoio à manifestação do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Cruz, por ser essa a melhor forma de interpretar o papel do direito penal à luz da Constituição da República”, conclui a nota.
Leia a nota na íntegra:
Recebemos com preocupação e indignação a manifestação do Exmo. Desembargador Guilherme Gonçalves Strenger, Presidente da Seção de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, referente às críticas feitas pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Cruz às decisões proferidas pela Corte paulista, em evento do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), realizado no dia 16 de julho de 2020.
Por primeiro, imperioso salientar que a independência dos Magistrados, assegurada constitucionalmente, existe justamente com o fim de proporcionar o desenvolvimento da judicatura de forma livre e imparcial; para, se assim for necessário, controlar o arbítrio estatal, mesmo que isso signifique ir contra a opinião pública. Tal independência, por isso, não pode sustentar, ainda que admitido o livre convencimento motivado, transgressões à Constituição Federal, às leis federais e à jurisprudência de Tribunais Superiores, sob pena de macular a prestação jurisdicional, e contribuir para o agravamento da insegurança jurídica.
Categoricamente afirmar que Magistrados bandeirantes judicam pautados em consequencialismo é confessadamente divorciar-se do processo penal constitucional, no qual se busca verificar a legalidade de medidas, a justa formação de culpa e a correta individualização de pena.
O processo penal não tem o fim único de impor medidas restritivas de liberdade. Processo penal é garantia – tanto do acusado, quanto da vítima; é, sobretudo, forma de impedir que o poder punitivo do Estado violente os direitos daquele que se vê acusado. Assim, processo penal, com todos os recursos a ele inerentes, não se presta apenas a proteger cidadãos de bem que se portariam de maneira ordeira e correta, mas é um meio de reconstrução aproximativo de um determinado fato histórico, voltado à verdade possível e processualmente relevante, tendo sempre por balizas a legalidade e a presunção de inocência de todo e qualquer acusado.
Vale lembrar que Juiz não é agente de segurança pública; não julga moralidade, a forma de cada cidadão se portar, tampouco tem a missão de proteger a sociedade, para assim poder se pronunciar de forma isenta e livre de pré-conceitos. Na verdade, conforme assentado há muito por eminente integrante da própria Corte paulista, “ao Juiz criminal cabe a função de resguardar e proteger os direitos individuais do homem diante do poder punitivo do Estado.”1 Somente dessa forma será possível sustentar um processo penal democrático, sempre inequivocamente vinculado às provas produzidas nos autos sob o crivo do contraditório.
Os dados referidos pelo Exmo. Min. Rogério Schietti demonstram, infelizmente, que a Corte paulista parece agir com a contumácia de desrespeitar as posições consolidadas nos Tribunais hierarquicamente superiores. Tais atitudes estão mais conectadas a um confessado sentimento de combate ao crime, concepção que afeta a própria estrutura acusatória do processo, na contramão das garantias previstas na Constituição, as quais todos os operadores do Direito juraram proteger.
Aliás, os apontamentos feitos pelo Exmo. Ministro do Superior Tribunal têm bastante aderência à realidade empiricamente constatada. Em pesquisa2 realizada pela FGV Direito Rio, coordenada pelo Prof. Thiago Bottino, na qual foram analisados os fundamentos dos habeas corpus impetrados nos Tribunais Superiores entre os anos de 2006 e 2014, verificou-se que 43,80% dos habeas corpus e recursos em habeas corpus que tramitaram no STJ foram articulados contra decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o que não é compatível com dados da população estadual (São Paulo concentra 21,72% da população brasileira), nem com os dados da população prisional à época (34,60% dos presos).
Verificou-se também que alguns dos temas com maior incidência de habeas corpus contra decisões das Câmaras Criminais do TJSP são relativos às questões já sumuladas pelo STF e pelo STJ, o que, em alguns casos, levou ao patamar altíssimo de 62% de concessão da ordem em habeas corpus e recurso em habeas corpus, tudo a indicar que os Tribunais Superiores, em especial o STJ, vêm recebendo, ao longo dos anos, uma avalanche de impetrações, justamente porque o Tribunal de Justiça de São Paulo parece insistir sistematicamente em desrespeitar os entendimentos fixados pela jurisprudência, optando por aplicar interpretação desfavorável aos acusados, já superada e incompatível com a leitura constitucional feita pelas Cortes Superiores, mesmo que ao arrepio daquilo que se entende juridicamente aceitável.
Seguir entendimentos consolidados e a jurisprudência dos Tribunais Superiores, ainda que mais favoráveis àqueles não inseridos no seleto grupo dos “cidadãos de bem”, é sinônimo de efetiva e justa prestação jurisdicional. Mais do que isso, é a materialização dos princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana – fundamentos da República –, são as únicas alternativas possíveis em nosso jovem Estado Democrático de Direito, garantindo-se a todo e qualquer acusado em processo penal a aplicação justa das leis federais e as garantias existentes em nossa Carta Magna.
O sistema de precedentes judiciais, inaugurado pelo Código de Processo Civil de 2015, como bem lembrado pelo Ministro Rogerio Schietti em sua fala, para além de se conformar com os princípios regentes da atividade jurisdicional, surge como forma de trazer higidez e coerência ao ordenamento jurídico, evitando que a situações idênticas sejam ofertadas consequências diversas. A sua finalidade precípua é garantir segurança jurídica. Por outro lado, sua afronta de forma reiterada, representa retrocesso e quebra da harmonia de toda a sistemática desenvolvida para dar maior segurança, estabilidade e isonomia na prestação jurisdicional.
Portanto, os advogados que subscrevem este manifesto, protestando a favor da coerência e integridade do sistema jurídico, bem como pelo respeito às garantias individuais de todos os acusados em processo penal, vem a público externar seu apoio à manifestação do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Cruz, por ser essa a melhor forma de interpretar o papel do Direito Penal à luz da Constituição da República.
André Fini Terçarolli – OAB/SP 253.556
Cecilia Mello – OAB/SP 79.730
Flavio Grossi – OAB/SP 422.133
Marcelo Egreja Papa – OAB/SP 374.632
Marcelo Savoi – OAB/SP 232.655
Pollyana Soares – OAB/SP 312.413
Com informações da Folha de S.Paulo.