Decisão do Judiciário sobre ‘lockdown’ no Maranhão divide especialistas em direito

Atribuição normalmente cabe ao Executivo; governador publicará decreto neste domingo (3)

A decisão da Justiça do Maranhão de decretar “lockdown”, com bloqueio total da circulação de pessoas, em quatro cidades da região metropolitana de São Luís a partir da próxima terça (5) representa a primeira vez que a medida restritiva é tomada no Brasil.

O juiz Douglas de Melo Martins, da Vara de Interesses Difusos e Coletivos da Comarca da Ilha de São Luís, atendeu na quinta (30) a pedido do Ministério Público. O governador Flávio Dino (PCdoB) declarou que cumpriria a decisão.

Especialistas divergem, no entanto, quanto à competência da decisão, que deveria ter sido tomada, segundo advogados ouvidos pela reportagem, pelo Poder Executivo, no caso, o governador ou os prefeitos dos municípios que fazem parte da ilha de São Luís (Paço do Limiar, Raposa e São José de Ribamar, além da capital).

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A advogada e juíza federal aposentada Cecilia Mello lembra que o marco inicial da discussão é a decisão do STF que deixou a cargo de governadores e prefeitos medidas na contenção da pandemia. “A decisão buscava um não-fazer do presidente, dizendo que cada um tem sua competência para cuidar do assunto, mas a decisão no Maranhão tem como objeto um fazer.” Para Mello, o judiciário age dentro de sua competência no caso.

“O Ministério Público é investido da competência de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e coletivos”, diz a advogada Cecilia Mello.

Para Floriano de Azevedo Marques Neto, advogado e diretor da faculdade de direito da USP, não cabe a um juiz a decisão. “Faltam a ele os meios para dimensionar abrangência e período da medida”, diz, acrescentando que o mais indicado teria sido, ao receber o pedido do MP, convocar os envolvidos para uma audiência.

“Não se faz ‘lockdown’ de canetada. Vai dar trabalho se organizar rapidamente para dar cumprimento a uma ordem.”

A advogada constitucionalista Vera Chemin vai na mesma linha. “A despeito de o Ministério Público ter competência para zelar pela saúde pública, que é um bem considerado coletivo, o Judiciário usurpou da competência do Poder Executivo”, diz ela.

Para Chemin, somente no caso de omissão do Poder Executivo a questão poderia ser decidida judicialmente, sem ferir o princípio da separação dos Poderes. Segundo ela, isso pode gerar muita judicialização, caso surjam decisões semelhantes pelo país.

“Não me parece que houvesse por parte dos Executivos, estadual e municipal, omissão tão gritante para permitir a um juiz interferir numa decisão que não é própria dele”, diz Edgard Silveira Bueno Filho, advogado e ex-presidente, assim como o governador Flávio Dino, da Associação dos Juízes Federais do Brasil.

O juiz Luís Manuel Fonseca Pires, professor de direito público na PUC, diz que o Judiciário não tem condições de avaliar, mesmo com parâmetros do Ministério Público, a forma de operacionalizar medidas contra o coronavírus.

“Salvo se houver comportamento que seja discordante das diretrizes mundiais de planejamento em saúde”, diz.

“Não cabe ao Judiciário intervir para determinar qual deve ser a forma de ação no planejamento da saúde diante de uma pandemia se houver, da parte de governadores, prefeitos e do presidente, um comportamento adequado.”

Celeste Leite dos Santos, promotora de justiça do Ministério Público de São Paulo, concorda com Mello. “Não precisaríamos de Poder Judiciário se as decisões administrativas não pudessem ser revistas. Bastaria o presidente mandar todos voltarem a trabalhar e já teríamos voltado.”

“Podem até existir questionamentos”, diz Ulisses Sousa, advogado e ex-procurador geral do Maranhão, “mas não vejo como criticar uma decisão desse conteúdo, na qual as determinações visam proteger vidas e a saúde pública”.

Reportagem publicada na Folha de S.Paulo.

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