Desde que começou a valer como norma, há 16 anos, a Lei Maria da Penha tem sido um dos casos mais emblemáticos de sucesso e de combate à violência de gênero no Brasil e na América Latina. O conjunto de regras com instrumentos de proteção e acolhimento das mulheres em situação de violência trouxe mecanismos jurídicos que garantem assistência social, psicológica e isolam a vítima do agressor, que também passa a ser acompanhado pelo sistema jurisdicional.

Nesse período, a regulamentação vem sendo modificada para dar mais segurança às vítimas de violência. Uma dessas alterações é a Lei 13.827/2019, que permite que a medida protetiva de afastamento do agressor seja concedida pelo delegado, se o município não for sede de comarca, ou pelo policial, caso também não haja delegado de polícia no momento.

A norma motivou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF). O pedido, feito pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), indicava a ofensa ao princípio da reserva de jurisdição, uma vez que atribui à autoridade policial competência estrita ao Judiciário para ingressar no lar ou domicílio do cidadão, retirá-lo e mantê-lo afastado.

Nesta semana, a maioria do STF entendeu que as alterações são constitucionais e podem ser aplicadas, o que afeta a situação de milhares de vítimas, principalmente em cidades do interior do país.

Para os especialistas ouvidos por LexLatin, a partir de agora será preciso maior atenção e preparo das autoridades policiais diante de situações de violência contra a mulher. “Isso porque, se por um lado se reconhece a constitucionalidade dessa competência policial, por outro também deverá haver – e é importante que haja – uma cobrança maior da sociedade quanto ao efetivo e correto exercício dessa competência cautelar”, avalia Cecilia Mello, sócia do escritório que leva seu nome.

Para a advogada, o que deve ser considerado, em primeiro lugar, é a preservação da vida e integridade da vítima e seus dependentes. “Há necessidade que os efeitos práticos se verifiquem nesses contextos de violência. E as autoridades policiais devem ser preparadas para isso, a exemplo de tudo quanto vem sendo implementado, por exemplo, nas Delegacias das Mulheres”, diz.

A discussão levanta um debate maior em relação às medidas que são tomadas nos grandes centros, com aparelhamento policial e de justiça, e cidades do interior, onde os recursos são outros, muitas vezes bem menores, o que dificulta a punição dos culpados e proteção das vítimas.

É bom lembrar, segundo os especialistas consultados, que em muitos casos, nestes lugares, o delegado de polícia age em nome do Estado, integra carreira jurídica e todas as suas decisões têm, obrigatoriamente, esteio na lei. Por isso, não se justifica impor à vítima de violência doméstica dificuldades e demora na efetivação de sua proteção.

Em boa parte dos casos, de acordo com os advogados consultados, feito o boletim de ocorrência, em 48 horas, em média, já se tem uma decisão concedendo ou não a medida protetiva.

Mas nem todo mundo é a favor dessa medida. Quem é contra acredita que a lei é inconstitucional, porque transfere para servidores do Executivo competências designadas constitucionalmente para o Poder Judiciário. “A Lei Maria da Penha havia previsto a solução dessa questão de não termos comarcas em todos os lugares: era justamente de criar juizados exclusivos para violência doméstica em todas as cidades brasileiras. E isso não foi levado à cabo”, afirma Isabela Guimarães Del Monde, fundadora da Gema Consultoria em Equidade, sócia do TG Advogados e colaboradora do movimento MeToo Brasil.

Para a especialista, quando são transferidas competências para delegados e policiais, a Lei Maria da Penha é enfraquecida na hora em que determina a criação desses juizados, que deveriam trabalhar com toda questão integral da violência doméstica. “Os profissionais delegados e policiais não recebem formação adequada para questões de gênero e violência doméstica. Então, há muitas chances de que o delegado possa conhecer o marido da vítima – especialmente nestas cidades pequenas – e não conceder uma medida protetiva para a vítima, sem nenhum tipo de possibilidade imediata de recurso, como acontece se a medida fosse feita pelo Judiciário”, analisa.

O debate sobre a violência contra a mulher, que tem ares de pandemia nos países da América Latina, pode ajudar a diminuir os números da violência e de mortes. Segundo dados do IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), em pesquisa publicada em fevereiro de 2021, pode-se contabilizar que a cada 1 minuto, 25 mulheres brasileiras sofrem violência. Esse dado significa que 15% das brasileiras acima de 16 anos tiveram experiências de violência física, psicológica ou sexual praticadas por homens de dentro ou próximos à família, o que equivale a 13,4 milhões de mulheres por aqui.

Segundo os pesquisadores, a implementação da Lei Maria da Penha afetou o comportamento de agressores e vítimas por três canais: aumento do custo da pena para o agressor; aumento do empoderamento e das condições de segurança para que a mulher pudesse denunciar; e aperfeiçoamento dos mecanismos jurisdicionais, possibilitando ao sistema de justiça criminal que atendesse de forma mais efetiva os casos envolvendo violência doméstica.

O relatório “Visível e Invisível, a vitimização de mulheres no Brasil”, publicado em 2021 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, indicou um incremento do número de casos de violência doméstica em todo o mundo neste período, sendo as mulheres as principais vítimas.

Publicado na LexLatin Brasil.

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