A decisão é histórica para a comunidade LGBTQIA+ brasileira. Nesta semana a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou que, a partir de agora, a Lei Maria da Penha se aplica aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transexuais.

A Lei Maria da Penha representou um importante marco jurídico na defesa dos direitos das mulheres brasileiras, por tratar de forma integral o problema da violência doméstica. A norma criou instrumentos de proteção e acolhimento emergencial à mulher em situação de violência, isolando-a do agressor, e ofereceu mecanismos para garantir a assistência social e psicológica à vítima e preservar seus direitos patrimoniais e familiares. Além disso, sugeriu aperfeiçoamento e efetividade do atendimento jurisdicional e previu instâncias para o cuidado do agressor.

Com a confirmação da decisão, tudo isso passa a ser usado a favor das mulheres trans. O avanço, segundo os especialistas, é enorme e importante para salvar vidas. O Brasil responde, sozinho, por 38,2% dos homicídios contra pessoas trans no mundo. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais em 2021 foram 140 assassinatos. O país está no topo da lista como o que mais mata essa população pelo 13º ano seguido.

Segundo dados do IPEC (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), em pesquisa publicada em fevereiro de 2021, pode-se contabilizar que a cada 1 minuto 25 mulheres brasileiras sofrem violência. Esse dado significa que 15% das brasileiras acima de 16 anos tiveram experiências de violência física, psicológica ou sexual praticadas por homens de dentro ou próximos à família, o que equivale a 13,4 milhões de brasileiras.

Na mesma decisão dessa semana que inclui as mulheres trans, o STJ determinou a aplicação das medidas protetivas requeridas por uma transexual, nos termos do artigo 22 da Lei 11.340/2006, após ela sofrer agressões do seu pai na casa da família. O caso foi levado até o Tribunal pelo Ministério Público de São Paulo, estado onde o caso aconteceu.

“Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”, disse o relator do caso no STJ, o ministro Rogerio Schietti Cruz.

A decisão em primeira instância e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negaram as medidas protetivas, entendendo que os casos aplicáveis da Maria da Penha seriam limitados à condição de mulher biológica. Ao STJ, o Ministério Público argumentou que não se trata de fazer analogia, mas de aplicar simplesmente o texto da lei, já que o artigo 5º fala em violência “baseada no gênero”, e não no sexo biológico.

“Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres”, enquanto sexo se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, de modo que, para ele, o conceito de sexo “não define a identidade de gênero”, avaliou Schietti Cruz durante o julgamento.

Segundo o IPEA, a implementação da lei, há 15 anos, afetou o comportamento de agressores e vítimas por três canais: aumento do custo da pena para o agressor; aumento do empoderamento e das condições de segurança para que a mulher pudesse denunciar; e aperfeiçoamento dos mecanismos jurisdicionais, possibilitando ao sistema de justiça criminal que atendesse de forma mais efetiva os casos envolvendo violência doméstica.

Para o especialistas consultados por LexLatin, o conceito de mulher trazido pela Lei Maria da Penha suplanta o perfil biológico binário (sexo feminino/sexo masculino) e deve atender de forma ampla o conceito de mulher. “É necessário que a identidade de gênero seja definida como a experiência pessoal de gênero, o que pode ou não corresponder ao sexo atribuído de forma biológica. Desse modo, imprescindível a compatibilidade ao gênero com o qual a vítima se identifica psicologicamente, fisicamente e/ou socialmente”, avalia a advogada Cecília Mello, sócia fundadora do escritório que leva seu nome.

Para Mello, a jurisprudência majoritária e diversos autores já apontavam o critério psicológico (como a pessoa se identifica) como o mais adequado. “O posicionamento do STJ vem consolidar a posição de que eventual ausência de norma expressa não pode obstar o reconhecimento de garantias constitucionalmente asseguradas”, afirma.

Para as especialistas, há um aspecto central que vai além dessa decisão do STJ e que remete à necessidade de interferir na sociedade por meio de políticas públicas efetivas de maneira a assegurar o direito à igualdade de gênero. Não apenas na lei ou perante o Poder Judiciário, mas em casa, na escola, no trabalho, no setor público e na iniciativa privada. A igualdade de gênero precisa ser, portanto, ensinada, cultivada e exaltada.

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