Presidente faz críticas, mas segue impedido de agir contra estados

Por Flávio Ferreira e Renata Galf, da Folha de S.Paulo

Logo após demitir o ministro Luiz Henrique Mandetta (Saúde), nesta quinta-feira (16), o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) voltou a criticar ações de governadores e prefeitos para conter o coronavírus.

Apesar dessa insistência e da troca do ministro, Bolsonaro segue amarrado e sem meios próximos para colocar em prática suas antigas ameaças de editar decretos ou medidas provisórias para reverter as decisões de governos locais sobre o isolamento social.

Ainda na quinta, o presidente disse que poderia tentar uma alternativa: enviar um projeto de lei que aumenta a lista de atividades essenciais, o que viabilizaria a reabertura do comércio, por exemplo.

Na quarta (15) o Supremo Tribunal Federal decidiu que estados e municípios têm autonomia para impor o isolamento. Os nove ministros que votaram defenderam que prefeitos e governadores têm competência concorrente em matéria de saúde e podem regulamentar a quarentena.

“Entendo a preocupação do governo, porque a competência comum administrativa não permite a um prefeito ou governador interditar um aeroporto internacional. Isso não é competência municipal, é nacional”, disse o ministro Alexandre de Moraes na sessão.

“Da mesma forma que não compete ao presidente da República verificar se um município deve interditar bares e restaurantes em virtude da proliferação do vírus.”

Já Gilmar Mendes afirmou que o ideal seria criar um comitê com estados e municípios. “O presidente não pode atropelar competências federativas, assim como os estados e municípios não podem atropelar as competências da União.”

O sistema federalista do Brasil concede autonomia para estados e municípios em áreas como saúde e educação, o que restringe a possibilidade de interferência do presidente.

O presidente pode determinar o fim da quarentena?

Não, segundo Cecilia Mello, advogada e juíza aposentada do TRF-3. Segundo ela, a portaria 356 de 2020 diz que a quarentena “será determinada mediante ato administrativo formal […] e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município”.

O presidente pode mandar reabrir o comércio? Não, de acordo com o professor de direito público da FGV-SP Carlos Ari Sundfeld. “O Brasil é uma federação, e atos municipais e estaduais não podem ser revistos pelo presidente.” Ainda segundo ele, “tudo que o presidente pode fazer é acionar a Justiça contra o ato”.

O presidente pode determinar a reabertura de escolas municipais e estaduais? Não. “A competência comum do ministro da Saúde para dispor sobre a quarentena não exclui a competência dos gestores locais e, nos casos em que as medidas adotadas sejam conflitantes, deve-se preservar as medidas locais a fim de preservar o federalismo”, diz advogado Fernando Cais.

O presidente pode determinar o fim de restrições de circulação em rodovias interestaduais e intermunicipais? De acordo com o professor de direito público da FGV-Rio Wallace Corbo, a circulação dentro dos limites de municípios e estados não pode sofrer interferência por parte do governo federal. A atuação da União cabe em restrições de circulação interestadual e internacional. O mesmo vale para as proibições de transportes coletivos locais, intermunicipais e interestaduais.

O presidente pode determinar o fim de restrições no uso de transportes aéreos? Sim, pois o transporte aéreo e os aeroportos são serviços de competência do governo federal. De acordo com Sundfeld, governos estaduais não podem mandar parar o transporte aéreo. “Nesse caso, a União pode pedir que aeroportos e companhias aéreas ignorem o ato da autoridade local.”

No atual regime de calamidade pública, quais são os poderes excepcionais atribuídos ao presidente? Segundo Luciano de Souza, sócio do escritório Cescon Barrieu, “a calamidade pública reconhecida pelo Congresso foi baseada na Lei de Responsabilidade Fiscal, que não tem o condão de atribuir poderes excepcionais ao presidente, como ocorre no caso de decretação de estado de defesa ou estado de sítio”.

Se o presidente decretar estado de sítio, quais poderes excepcionais ele adquire? De acordo com o professor Felipe Balera, na vigência do estado de sítio poderão ser tomadas as seguintes medidas: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa; suspensão da liberdade de reunião e intervenção nas empresas de serviços públicos e requisição de bens, entre outras.

De que forma o presidente poderia revogar decisões dos governadores? A única forma de o presidente intervir nos atos de um estado é por meio de intervenção federal, de acordo com o professor de direito da FGV-Rio Daniel Vargas. Constam na Constituição como hipóteses para isso os casos de guerra, invasão estrangeira e grave comprometimento da ordem pública. Esta última, ainda segundo Vargas, seria a que mais se aproxima da disputa atual entre o presidente Bolsonaro e governadores. Uma vez decretada a intervenção, caberá ao Congresso analisar a decisão no período de até 24 horas.

Reportagem publicada na Folha de S.Paulo.

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