Publicado na Revista dos Tribunais | vol. 1022/2020 | p. 307 – 325 | Dez /2020 DTR\2020\14383

Resumo: A partir do impulsionamento dado à ciência pela pandemia causada pelo vírus da Covid-19, o SARS-CoV-2s, objetiva-se demonstrar a necessidade de prevalência do direito à saúde, global e constitucionalmente garantido, de maneira a assegurar-se o desenvolvimento e a distribuição igualitária de uma vacina como ferramenta eficaz de contenção do vírus. Coordenação de iniciativas globais e nacionais devem ser priorizadas na solução da crise, cujo término somente se vislumbra com parte considerável da população mundial imunizada. Parcerias bilaterais entre países e farmacêuticas, embora necessárias e com perspectivas exitosas, não devem afastar medidas voltadas à imunização global, a exemplo da COVAX, um dos pilares do programa “Access to Covid-19 Tools (ACT) Accelerator”, resultado da reunião de expertises da Organização Mundial da Saúde (OMS), GAVI e CEPI. A vacina, por sua vez, não reflete apenas um direito, mas um dever de cada cidadão e da sociedade como um todo, sendo absolutamente necessária a existência de uma coordenação segura entre a União e os demais entes da federação.

Abstract: Based on the boost given to science by the pandemic caused by the Covid-19 virus, SARS-CoV-2s, the objective is to show the need to prevail the right to health, globally and constitutionally guaranteed, in order to ensure the development and the equal distribution of a vaccine as an effective tool to contain the virus. Coordination of international and national initiatives must be prioritized in order to solve the crisis, the end of which can only be seen with a considerable part of the immunized world population. Bilateral partnerships between countries and pharmaceutical companies, although necessary and with successful prospects, should not preclude measures aimed at global immunization, such as COVAX, one of the pillars of the “Access to Covid-19 Tools (ACT) Accelerator” program, as a result of the meeting of expertise of the World Health Organization (WHO), GAVI and CEPI. The vaccine, in turn, does not reflect only a right, but a duty of each citizen and of society as a whole, being absolutely necessary the existence of a safe coordination between the Union and the other entities of the federation.

Sumário
1. Introdução
2. A Organização Mundial de Saúde, os esforços globais e a COVAX
3. O Brasil, o direito fundamental à saúde e a distribuição de vacinas
4. A obrigatoriedade da vacina versus a confiança
5. Conclusão – Referências



1.Introdução

Em dezembro de 2019, embora se reconhecesse que muito ainda estava por ser feito, celebravam-se1 os avanços na área de saúde global, com algumas relevantes vitórias. A erradicação da poliomielite parecia estar próxima, pois a Nigéria, último país da África a sofrer um surto, completara três anos em agosto de 2019 sem apresentar um único caso, apontando para um continente livre da pólio em 2020. O vírus da pólio selvagem – tipos 2 e 3 – estava oficialmente erradicado em todo o mundo, e o tipo 1 permanecia apenas no Afeganistão e no Paquistão. Apesar de 38 milhões de pessoas no mundo estarem vivendo com HIV, registrou-se em 2019 pela segunda vez na história um caso de remissão do vírus, conhecido como o “Paciente de Londres”2, em deferência ao primeiro caso registrado como o “Paciente de Berlim”34. A primeira vacina do mundo contra a malária, a RTS, já estava sendo usada em Malaui. E ainda, a Organização Mundial de Saúde – OMS, pré-qualificou
naquele mês uma vacina contra o Ebola5 no processo mais célere já realizado. A primeira pesquisa demonstrando a eficácia dessa vacina data de julho de 20156.

A vacina contra o Ebola, conhecida por Everbo, fora utilizada em seus ensaios clínicos para proteger mais de 250 mil pessoas e provou ser eficaz após uma única dose. Com a aprovação da OMS, poderia ser utilizada mais amplamente para controlar surtos e ser ministrada àqueles que entrassem em contato com o vírus, altamente contagioso e com taxa de mortalidade de até 90%. Para que se tenha uma noção da envergadura do problema, entre março de 2014 e junho de 2016, um grande surto de Ebola, que teve início na Guiné e se espalhou pela Libéria e Serra Leoa, infectou mais de 28,6 mil pessoas e levou 11 mil à morte. Novo surto na República Democrática do Congo custou mais de duas mil vidas entre 2018 e 2019. Esta vacina é uma resposta relevante aos esforços científicos que foram travados para combater o Ebola, podendo evitar a sua dramática disseminação7.

Indiscutivelmente, as conquistas foram extremamente relevantes para a saúde global em 2019, e a perspectiva era de avanços para 2020. Não que esse pensamento tenha mudado, mas o direcionamento dos esforços científicos mundiais seguramente foi drasticamente alterado.

A pandemia causada pelo vírus da COVID-19, o SARS-CoV-2, fez com que a Organização Mundial de Saúde – OMS, declarasse, em 30 de janeiro de 2020, situação de emergência de saúde pública de interesse internacional (ESPII). Em 11 de março do mesmo ano, o Brasil decretou estado de calamidade pública por meio do Decreto Legislativo 6 de 20208. A Lei 13.979/20209 estabeleceu medidas de combate à crise, apontando a rápida propagação do vírus e o número crescente de mortes.

Em 28 de setembro de 2020, o mundo registrou mais de um milhão de mortes causadas pela COVID-19, e o Brasil mais de 140 mil. Restou evidenciada uma pandemia sem precedentes na história, que avassalou os sistemas de saúde e a economia globais, impondo regras de distanciamento como forma de prevenção ao contágio, com modificação brutal de toda a dinâmica social da humanidade, até mesmo como regra de sobrevivência. A pandemia não dá trégua. Continua avançando mesmo nos países que primeiro experimentaram os seus efeitos aniquiladores, que temem por novos picos de contaminação, colapsos dos sistemas de saúde, e mais mortes.

A rápida disseminação do vírus causador da COVID-19, somada ao seu elevado grau de contágio, tem impulsionado esforços para a realização de inúmeras pesquisas científicas na busca de uma de uma vacina universalmente eficaz. Essas medidas, além de prementes em razão das proporções alcançadas pela pandemia, também têm se mostrado como o caminho viável na busca da contenção da contaminação. Os alarmantes índices de mortalidade que ainda se verificam, lamentavelmente indicam que os progressos feitos em relação a medicamentos seguros e efetivos para o tratamento da doença são incipientes diante do vírus. Recentemente, estudo publicado na JAMA (Journal of the American Medical Association) indicou o uso de esteroides para as fases mais graves da COVID-1910. A OMS fez a recomendação de utilização do medicamento nas condições apontadas na pesquisa11. Há um avanço, mas não uma solução diante de tamanha complexidade.

Frente a tantas dúvidas e incertezas, se por um lado as circunstâncias são graves, por outro também são desafiadoras. Várias são as vacinas contra a COVID-19 que atualmente estão na fase 3 de seus ensaios, com eficácia avaliada e virologicamente confirmadas para a prevenção da doença. O Brasil participa de estudos clínicos de quatro dessas vacinas12, todos em estágio adiantado de testes, ou seja, na fase 3: (i) vacina de Oxford, produzida pelo laboratório AstraZeneca e pela Universidade de Oxford, com estudo aprovado pela Anvisa em 2 de junho do presente ano; (ii) vacina Sinovac, desenvolvida pela empresa Sinovac Research & Development Co. Ltd., em parceria com o Instituto Butantan, com estudo aprovado pela Anvisa em 3 de julho do presente ano; (iii) vacina BioNTech e Wyeth/Pfizer, com estudo aprovado pela Anvisa em 21 de julho do presente ano; e (iv) vacina Jansen-Cilag, produzida pela divisão farmacêutica da Johnson-Johnson, com estudo clínico aprovado pela Anvisa em 18 de agosto do presente ano.

A expectativa está voltada para que tenhamos uma primeira geração de vacinas contra o vírus da COVID-19, o SARS-CoV-2, aprovada até o final de 2020 ou início de 2021. Na perspectiva comum, essas vacinas deverão fornecer imunidade à população, reduzindo a transmissão da doença. Entretanto, alguns fatores apontados cientificamente sugerem cautela, pois não há, até o momento, segurança de que as vacinas COVID-19, mesmo que se mostrem eficazes na redução da gravidade da doença, apresentem grau equivalente de redução da transmissão do vírus. Isso porque, entre outras variáveis, a duração da proteção vacinal contra uma reinfecção pode durar menos de um ano. Ou seja, a ideia de que a imunidade populacional provocada pela vacina COVID-19 possibilitará um retorno à normalidade que antecedeu a pandemia, ainda é frágil, mas não reduz a imensa relevância científica e social dessas vacinas. Imprescindível, nesse cenário, que a população e os gestores públicos estejam conscientes de que as vacinas de primeira geração poderão não ser a solução final de combate à COVID-19, mas sim uma ferramenta de resposta da saúde pública ao vírus13.

Não obstante a imposição de restrições e perdas, a pandemia exaltou a importância e imprescindibilidade das pesquisas científicas, interferiu no Direito, gerou questionamentos e escancarou a necessidade de desenvolvermos e apoiarmos políticas públicas e medidas uniformes que atendam genuinamente ao interesse público e coletivo. A pandemia determinou um novo enfoque sobre a saúde, não havendo mais espaço para um pensamento individualizado sobre esse direito, sobre esse cuidado. Ademais, reforçou a ideia de que a saúde é universal, intrinsecamente coletiva, um verdadeiro direito metaindividual a demandar um sistema global de saúde como medida indispensável para a sua própria concretização.

2. A Organização Mundial de Saúde, os esforços globais e a COVAX

O Brasil participou da criação da Organização Mundial de Saúde – OMS, tanto assim que o Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 14 de fevereiro de 1946, aprovou a sua constituição, bem como um acordo provisório referente à OMS e um protocolo relativo à Repartição Internacional de Higiene Pública de Paris, firmados pelo Brasil e diversos países, na cidade de Nova York, em 22 de julho de 1946, por ocasião da Conferência Internacional de Saúde. A ratificação desses atos foi depositada perante o Secretariado da Organização das Nações Unidas, em 1º de junho de 1948. Por meio do Decreto nº 26.042, de 17 de dezembro de 194814, determinou-se “que os mesmos, apensos por cópia ao presente Decreto, sejam executados e cumpridos tão inteiramente como nêles se contém”.

Nesse cenário jurídico, a Organização Mundial de Saúde (OMS), organismo da Organização das Nações Unidas (ONU), foi criada em 7 de abril de 1948, com o objetivo central de oportunizar, a todos os povos, a aquisição de saúde no mais elevado nível possível (art. 1º da Constituição da OMS)15. Partindo do princípio de que entre os diversos países a desigualdade de desenvolvimento na promoção da saúde e combate às doenças, particularmente as contagiosas, constitui um perigo comum, a OMS sempre atuou com proeminência na difusão e fortalecimento dos programas de imunização (Exposição de motivos da Constituição da OMS)16. Dentro desse objetivo de incentivar e aprimorar mecanismos para eliminar doenças endêmicas e epidêmicas (art. 1º, alínea “g”, da Constituição da OMS)17, a OMS define estratégias de conscientização mundial em relação à imunização, elabora calendário de vacinação obrigatória, monitora avanços e retrocessos, divulga dados e programas, entre outras atividades.

Importante apontar, ainda no que tange à competência e atuação da OMS, a adoção do Regulamento Sanitário Internacional, cujo texto de 2005 foi revisado por um grupo de trabalho intergovernamental e aprovado na 58ª Assembleia Mundial de Saúde da OMS. No Brasil, o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional foi promulgado pelo Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 202018. Essencialmente, referido regulamento tem a sua importância acentuada como principal mecanismo de proteção contra a propagação internacional de doenças, estabelecendo, entre outras medidas sanitárias, procedimentos para as hipóteses de propagação internacional de doenças e de situações de emergência de saúde pública internacional, tais como a recentemente evidenciada.

Afora as providências e medidas sanitárias efetivadas internacionalmente em caráter de urgência, a crise causada pelo novo coronavírus impulsionou uma corrida tanto para pesquisa de medicamentos eficazes contra a COVID-19, como para o desenvolvimento de vacinas. Países e farmacêuticas têm investido valores vultosos para alcançar a produção de uma vacina eficaz em tempo recorde. A OMS, além de acompanhar e monitorar a pandemia em níveis globais, tem caminhado lado a lado com essas iniciativas científicas. Nesse cenário, e considerando um resultado exitoso sobre a vacina, desfecho este que ora se delineia, surgem questionamentos acerca do acesso à vacina. A dúvida central é: considerando os custos envolvidos e que a oferta poderá não fazer frente à demanda, apenas aqueles com maior poder econômico terão acesso à vacina?

Pensando nisso, a Organização Mundial da Saúde (OMS), a GAVI e a CEPI lançaram a COVAX, que é um dos pilares do programa “Access to COVID-19 Tools (ACT) Accelerator”19, iniciativa global que visa acelerar o desenvolvimento, a produção e o acesso equitativo a diagnósticos, tratamentos e vacinas para a COVID-1920, objetivando reduzir os impactos da pandemia e, evidentemente, chegar à sua erradicação. Além da OMS, organismo internacional, a iniciativa conta com a participação de duas organizações não governamentais, a GAVI e a CEPI.

A GAVI, inicialmente designada Global Alliance for Vaccines and Immunisation, é uma organização internacional criada no ano 2000, com o objetivo de melhorar o acesso a novas vacinas, especialmente subutilizadas nos países mais pobres do mundo. Visando solucionar o problema de programas de imunização desses países, a “Bill and Melinda Foundation”, bem como outros fundadores da GAVI, pensaram em uma maneira de encorajar os fabricantes a baixar o preço das vacinas para países pobres, em retorno de uma demanda previsível de longo prazo e da grande quantidade de vacinas a ser adquirida pelos países. É por meio dessa modulação de mercado que a instituição alcança a diminuição de preços e a eliminação de riscos para as empresas farmacêuticas.21

A CEPI, sigla em inglês de “Coalition for Epidemic Preparedness Innovations”, foi lançada em 2017 em Davos, diante da necessidade de uma coordenação internacional entre atores públicos e privados, com vistas a desenvolver e estimular o processo de produção de vacinas contra doenças infecciosas emergentes, garantindo acesso às mesmas durante os surtos22. A proposta é que o desenvolvimento de vacinas e a gestão da distribuição possibilitem evitar novas epidemias, atentando-se ao fato de que, por vezes, o mercado se apresenta limitado.

Nesse objetivo, unindo expertises dessas três instituições, a COVAX busca solucionar uma crise, cujo término somente pode ser vislumbrado quando parte considerável da população mundial estiver imunizada. Sem iniciativas como a COVAX, corre-se o risco de a maior parte da população mundial permanecer sem cobertura vacinal, haja vista a antecipada aquisição, por alguns países, da produção de vacinas em desenvolvimento. O objetivo primordial da COVAX é maximizar as chances de produção da vacina na quantidade necessária ao enfrentamento da crise, procurando evitar que o poder econômico seja uma barreira para o acesso global à imunização23.

Como dito, alguns países, visando à proteção de suas populações, tomaram a dianteira na busca de acordos bilaterais com fabricantes para assegurar a aquisição de vacinas em desenvolvimento. Entretanto, será muito difícil enxergar um horizonte no final da crise se apenas esses países conseguirem imunizar suas populações. A COVAX, por meio de mecanismos de gestão, objetiva corrigir essas distorções. Para tanto, não apenas apoiará a pesquisa e o desenvolvimento, mas também produzirá um portfólio de vacinas, negociando preços e ajustando condições24.

A expectativa, com as ações desenvolvidas pela COVAX, é que mais vacinas sejam desenvolvidas e que tanto países mais pobres possam dispor da indispensável cobertura vacinal, quanto países que não celebraram acordos bilaterais. Sob outro prisma, mesmo os países que estão financiando suas próprias vacinas também poderão ser beneficiados pela iniciativa, pois têm a oportunidade de adesão ao programa por medida de cautela e segurança, valendo-se efetivamente dele apenas no caso de seu projeto bilateral falhar.25

Os países financiadores podem participar de duas maneiras. Com o “Committed Purchase Arrangement” ou o “Optional Purchase Arrangement”. No primeiro tipo de acordo, o contratante compromete-se com a compra da vacina e faz um adiantamento do preço, no valor de US$ 1,60 por dose, ou 15% do custo total de uma dose, menor do que o requerido para a segunda modalidade de acordo. Nesse caso, os participantes estão efetivamente se comprometendo a comprar uma determinada quantidade de vacinas que, uma vez disponíveis, serão distribuídas equitativamente entre os participantes. Ainda nesta primeira modalidade de contratação, os participantes poderão não efetivar a compra na hipótese de o preço da vacina ser o dobro ou mais do esperado.26

Para a modalidade de compra opcional – “Optional Purchase Arrangement”, o adiantamento de pagamento será de US$ 3,10 por dose, além de uma garantia de US$0,40 por dose a título de cobertura de riscos, com vistas a proteger o empreendimento de eventuais danos causados a algum fabricante de vacinas já contratado. Nesta modalidade de contratação, o participante pode optar por não receber determinada vacina de um fabricante, sem prejuízo de receber, de outros fabricantes, a cota total acordada. Há, portanto, maior oportunidade de escolha, mas em contrapartida os valores a serem adiantados são maiores. Essa opção é mais atraente para aqueles países que já têm acordos bilaterais.27

Assim, a iniciativa parte do princípio de que não é suficiente alcançar o desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz, mas que essa também alcance um número suficiente da população mundial, de maneira a arrefecer a fase aguda da crise. Ou seja, a iniciativa busca que os países priorizem uma saída global da pandemia em detrimento de soluções nacionalistas. Ao invés de uma corrida pela vacina, favorece uma reunião de esforços por uma vacina. A GAVI anuncia como foco principal garantir que 92 países de renda média e baixa tenham, como os países que se autofinanciam, igual acesso às vacinas do COVID-19, e ao mesmo tempo.28

O Brasil optou por aderir à iniciativa COVAX. O Presidente da República enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória 1.003 de, 24 de setembro de 2020, para fins de autorização e ajuste do ordenamento jurídico nacional29. Isso porque a “Covax Facility” é um instrumento multilateral de compra de vacinas, o que, em tese, demandaria a realização de licitação para a sua contratação. Nesse contexto, o art. 2º da Medida Provisória prevê a observância das normas contratuais estabelecidas pela GAVI (Gavi Alliance), não sendo aplicáveis as normas previstas na Lei 8.666/93.. No entanto, o § 3º do referido artigo 2º determina que a dispensa do procedimento licitatório não implica desnecessidade de motivação da escolha de compra, nem da justificativa de preço e o atendimento às exigências sanitárias.

O art. 2º, § 2º, da MP 1.003/2020 indica que o Brasil direcionou a sua escolha de contratação para a modalidade de compra opcional, estando a aquisição sujeita à análise técnica e financeira em cada caso. Na mensagem enviada ao Congresso Nacional, aponta-se a estimativa de investimento de R$ 2.513.700.000,00 (dois bilhões, quinhentos e treze milhões e setecentos mil reais). O pagamento inicial para aderir a proposta é de R$ 711,7 milhões, garantia financeira de R$ 91,8 milhões e pagamento adicional de R$ 1.710,2 milhões.

3. O Brasil, o direito fundamental à saúde e a distribuição de vacinas

O direito à saúde está previsto no art. 6º, caput, da Constituição da República, dentro do capítulo dos direitos sociais, o qual encontra-se inserido no Título II – Dos direitos e garantias fundamentais. Novamente contemplado no art. 196 da Constituição Federal, em seção própria inserida no Título VIII – Da ordem social, onde a saúde é assegurada como direito de todos e dever do Estado em prestá-la. Ou seja, o direito à saúde está claramente no rol de direitos fundamentais do cidadão brasileiro e, portanto, passível de tutela jurisdicional. No entanto, o seu alcance vem sendo construído paulatinamente através do tempo desde a promulgação da Constituição de 1988, especialmente diante da evolução do Sistema Único de Saúde.

O direito à saúde ganha especial proteção com o sistema instituído no próprio texto constitucional, pois ultrapassa o direito à vida, abrangendo também a integridade física, que contém a saúde física e psicológica, e o direito ao desenvolvimento da personalidade30. A Constituição não só estabeleceu um sistema universal de saúde, como também suas diretrizes e como seria a sua atuação, deixando à legislação infraconstitucional a sua organização e forma de funcionamento.

Mesmo que inserido entre os direitos coletivos, o direito à saúde certamente tem dimensão individual. Ingo Wolfgang Sarlet explica que essa inserção entre os chamados direitos de segunda dimensão não se encontra na sua titularidade, mas na sua natureza e objeto. Para o autor, esses direitos, especialmente os direitos sociais básicos, como a saúde, não são exclusivamente coletivos, são direitos individuais de expressão coletiva. Ou seja, embora encarados como direitos coletivos, podem sempre ser reivindicados pelo indivíduo. Não se pode perder de vista que o direito a saúde não se aplica uniformemente a todos, o que não afasta, no entanto, a sua dimensão coletiva.31

No mesmo sentido, André de Carvalho Ramos afirma que o direito à saúde possui uma faceta individual difusa. Além do bem-estar físico, mental e social da pessoa humana, há o direito a viver em uma comunidade sadia sem riscos à saúde, por exemplo, sem riscos de epidemias32.

No entanto, cumpre observar que por vezes há um conflito entre a dimensão coletiva e individual do direito à saúde quando há a judicialização de tratamentos e/ou medicamentos não cobertos por políticas públicas no âmbito do SUS. Questiona-se a necessidade de ponderar o direito à saúde daquela pessoa que busca o benefício pela tutela judicial em face do direito dos demais, diante de um orçamento cada vez mais restrito33.

No julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário 271.286/RS, o Ministro Celso de Mello34, em seu voto vencedor, aponta desde logo que o direito à saúde previsto no art. 196 da Constituição obriga o Estado a garantir a todos essa proteção, de forma imediata, não sendo possível adia-la. A dimensão individual do direito à saúde restou muito clara no julgamento que expressamente apontou ser um direito subjetivo de todos. E, na condição de direito fundamental individual, a correlata prestação positiva por parte do Estado é passível de ser exigida individualmente por qualquer brasileiro35.

Essa faceta de direito individual é reforçada quando o Ministro Celso de Mello afirma que o direito à saúde deve assegurar a evolução das liberdades comezinhas do ser humano, associando-o ao direito à vida, conforme apontado na ementa do julgado:

“O sentido de fundamentalidade do direito à saúde – que representa, no contexto da evolução histórica dos direitos básicos da pessoa humana, uma das expressões mais relevantes das liberdades reais ou concretas – impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva que somente se terá por cumprido, pelas instâncias governamentais, quando estas adotarem providências destinadas a promover, em plenitude, a satisfação efetiva da determinação ordenada pelo texto constitucional.”

Sob um outro prisma, o Ministro Gilmar Mendes, no STA 175-AgR/CE36, aponta o caráter também coletivo do direito à saúde ao destacar que a concretização desse direito se dá por meio da formulação e implementação de políticas públicas, observando que a maioria das questões submetidas ao Poder Judiciário trata da efetivação de medidas já existentes. Nessa vertente, o direito à saúde assume caráter transindividual de política pública37. Esse entendimento é fortalecido quando o Ministro Gilmar Mendes prioriza o uso de política pública estabelecida pelo SUS, ou seja, apenas na hipótese de ineficácia do tratamento estabelecido pelo SUS é que haverá lugar para o tratamento escolhido pelo paciente e seu médico.

Essa vertente transindividual do direito à saúde foi delineada com precisão pelo Ministro Carlos Ayres Britto no julgamento em análise, ao apontar que o voto do Ministro Gilmar Mendes trata “não apenas da saúde como direito público, como direito fundamental, mas também da saúde como política pública, federativamente onipresente, ou onifederativa: uma política pública obrigatória para todos os entes da federação”. No entanto, aqui vale o alerta de Ingo Wolfgang Sarlet, de que o direito não se confunde com a política pública que o veicula38.

Nessa perspectiva de universalidade e obrigatoriedade do Estado quanto ao fornecimento, resta assentado que em matéria de direitos fundamentais não nos deparamos apenas com uma proibição de intervenção estatal, mas também com postulados de proteção que não podem ser insuficientes39. Embora não se tenha registro sobre a judicialização do direito à vacina, pelo menos no que tange ao viés de descumprimento pelo Estado de uma distribuição igualitária, a matéria não demanda maiores questionamentos no sentido de cada cidadão ter o direito de ser beneficiado com a cobertura vacinal.

No contexto pandêmico atualmente vivido, com diversas pesquisas de vacinas contra a COVID-19 em fase final de testes, os cidadãos brasileiros ainda poderão assistir a alguns embates entre gestores, se as políticas públicas de distribuição vacinal não forem bem delineadas e acordadas entre os entes da Federação. A adesão a programas de pesquisas de vacinas não foi realizada de maneira uniforme e, como visto, o Brasil participa de quatro programas: (i) Oxford; (ii) Sinovac; (iii) BioNtech e Wyeth/Pfizer; e (iv) Jansen-Cilag. Embora todos esses ensaios estejam na fase 3 das pesquisas, não há dúvida de que, exitosos, possam ter processos de fabricação com marcos temporais diferentes e, portanto, com programas de distribuição e imunização também diferentes. Ocorre que essas parcerias bilaterais entre Poder Público e fabricantes não foram todas celebradas no âmbito da União, podendo-se apontar especificamente a vacina Sinovac, objeto de parceria com o Estado de São Paulo, por meio do Instituto Butantan.

Diante desse quadro, e sem qualquer ordem de previsibilidade, duas situações hipotéticas podem acontecer. As vacinas objeto de parcerias celebradas pela União estarem prontas para a distribuição à população anteriormente às de São Paulo, ou estas estarem aptas à distribuição antes daquelas. No primeiro caso, poderia a União não contemplar um estado da Federação no programa nacional de vacinação ao argumento de que este já possui um acordo celebrado para suprimento próprio, e, portanto, não justificaria viesse a concorrer pela destinação de vacinas em detrimento de parcelas da população que só podem ser atendidas pela União? Da mesma forma, na segunda situação, poderia o Estado de São Paulo destinar as vacinas exclusivamente à população do seu território? E se alguma dessas vacinas – do Estado ou da União – experimentarem atraso na conclusão de suas pesquisas? E se alguma for inservível? São pontos que podem se tornar controvertidos e que necessitariam ser previamente ajustados entre os gestores públicos competentes, sob pena de o Poder Judiciário ser chamado a resolvê-los.

Doutrina e jurisprudência são assentes no sentido de que o instituto da requisição administrativa40 somente pode atingir bens particulares. O estado de defesa ou o estado de sítio são hipóteses de exceção que autorizariam o uso compulsório e a requisição de bens, de outros entes federados, pela União. Há decisões do Supremo Tribunal Federal no atual contexto de emergência de saúde pública: Ação Cível Originária 3.385/MA, objetivando que a União se abstivesse de requisitar e se apossar de ventiladores pulmonares previamente adquiridos de uma empresa pelo Estado do Maranhão; e Ação Cível Originária 3.393/MT, proposta pelo Estado do Mato Grosso contra a União e a empresa Magnamed Tecnologia Medica S/A. Em ambos os casos, em sede de liminar, restou consignada a impossibilidade de requisição de bens públicos, que somente teria lugar com a decretação do estado de defesa (art. 136, § 1º, II, CF/1988) ou de sítio (art. 139, VII, CF/1988), que outorgam poderes de crise ao Presidente da República.

Assim, afastada a possibilidade de requisição administrativa entre entes da Federação a recair sobre vacinas adquiridas por um ou outro, o contexto posto nos leva a retornar à análise do direito fundamental à saúde e da natureza das obrigações positivas do Estado.

Ao estabelecer que a saúde é um direito universal, a Constituição informa que todas as pessoas terão acesso ao sistema, independentemente de suas condições sociais, de qualquer contribuição, da região em que residam, todos os brasileiros são potenciais usuários do Sistema Único de Saúde – SUS. Além disso, o acesso deve ser igualitário, devendo ações de saúde considerar as discrepâncias regionais, como na distribuição de recursos41.

O artigo 198 da Constituição, que institui o Sistema Único de Saúde – SUS, determina o seu funcionamento de forma regionalizada e hierarquizada. O dispositivo ainda estabelece como diretrizes a descentralização, com direção única em cada ente; integralidade do atendimento, dando prioridade a ações preventivas e a participação da comunidade. O artigo 200 da Constituição, por sua vez, estabelece as competências do Sistema Único de Saúde – SUS, tendo sido regulamentado pela Lei 8.080/90 e pela Lei 8.142/90.

O Programa Nacional de Imunizações – PNI, consiste em uma política pública lançada pelo Governo Federal, na década de 1970 (Lei 6.259/1975), sendo o seu principal pilar a disponibilização, a todos os cidadãos brasileiros, de todas as vacinas obrigatórias presentes no calendário da Organização Mundial de Saúde.42 O Calendário Nacional de Vacinas, determinado pelo governo brasileiro no PNI43, anualmente atualizado, é o espelho das exigências praticadas pela própria OMS.

O Decreto 78.231/1976, que regulamenta a Lei 6.259/1975, aponta com bastante clareza a competência do Ministério da Saúde para coordenar o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, cuja responsabilidade institucional é atribuída ao Ministério da Saúde e às Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios Federais44. Neste ponto, relevante destacar que, não obstante o Programa Nacional de Imunizações preceder à criação do SUS, encontra-se inserido dentro desse sistema, nos termos do artigo 6º da Lei 8.080/90,45 levando à estrita observância dos preceitos constitucionais deferidos à saúde, de universalidade, equidade e integralidade.

No julgado do STA 175-AgR/CE46 suprarreferido, o Supremo Tribunal Federal também analisou o arcabouço legal do nosso Sistema Único de Saúde – SUS, a atuação do Estado na implementação de políticas públicas e a responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Neste último aspecto, consignou que “o princípio do acesso igualitário e universal reforça a responsabilidade solidária dos entes da Federação, garantindo, inclusive, a ‘igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie’ (art. 7º, IV, da Lei 8.080/90)” (g.n.). E mais adiante, tratando do aspecto prático dessa solidariedade, destacou a necessidade de ser “construído um modelo de cooperação e de coordenação de ações conjuntas por parte dos entes federativos”.

Dessa forma, dentro das premissas de igualdade e universalidade da distribuição de vacinas, nenhuma das situações postas inicialmente encontram amparo no ordenamento jurídico pátrio. Ou seja, observadas as peculiaridades e necessidades dos grupos mais vulneráveis à COVID-19 que efetivamente demandem prioridade na imunização, os entes da Federação deverão promover cooperativamente a distribuição de vacinas a todos os cidadãos, em todo o território nacional.

4. A obrigatoriedade da vacina versus a confiança

Controvérsia que tem sido objeto de debates diz respeito à obrigatoriedade ou não de se submeter a uma nova vacina contra a COVID-19. A Lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, prevê, em seu art. 3º, inc. III, “d”, que as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas47. Dessa forma, são as autoridades competentes que poderão determinar, ou não, a compulsoriedade da vacina, bem como a amplitude dessa eventual obrigatoriedade.

A indagação nos faz retornar às disposições estabelecidas pela legislação que rege o Programa Nacional de Imunização, o PNI. A Lei 6.259/1975 dispõe em seu art. 3º, caput, competir “ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório”. E o seu parágrafo único ainda estabelece que

“As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional.”

O Decreto 78.231/1976, que regulamenta a Lei 6.259/1975, por sua vez, prevê expressamente em seu artigo 29, caput, que “É dever de todo cidadão submeter-se e os menores dos quais tenha a guarda ou responsabilidade, à vacinação obrigatória”. Ou seja, em regra, seguir o calendário é obrigação e não opção, sendo a dispensa somente autorizada em casos específicos, conforme a letra do parágrafo único do mesmo artigo: “Só será dispensada da vacinação obrigatória, a pessoa que apresentar Atestado Médico de contra-indicação explícita da aplicação da vacina”. Em síntese, se a vacina contra COVID-19 for inserida no calendário como obrigatória, não será uma opção, salvo hipótese de contraindicação médica explícita.

Relevante observar que, não obstante a obrigatoriedade de a vacina estar vinculada a um comando legal, a cobertura vacinal não se efetiva de forma coercitiva em todos os contextos. Certo é que o Poder Público dispõe de diversos mecanismos de controle que já existem ou podem ser implementados, como necessidade de apresentação do atestado de vacinação dos filhos para o recebimento de salário-família, nos termos do art. 67 da Lei 8.213/9148, ou ainda para inscrição/manutenção de criança na creche49, mas sempre haverá situações não abrangidas por essas alternativas de verificação.

O problema da queda de cobertura vacinal tem sido objeto de estudos de pesquisadores, especialmente sob uma perspectiva social, buscando-se identificar as causas da não vacinação a partir de uma relação com contexto cultural, portanto com diversidade de percepções relacionadas à desigualdade social. Entretanto, a queda de cobertura vacinal tem sido constatada também em estratos socioeconômicos mais elevados50, abrindo outros caminhos de discussão, inclusive quanto a posicionamentos políticos e religiosos, sem que possamos deixar de fora a avalanche de informações, nem sempre cientificamente consistentes, que são veiculadas pela internet.

A identificação desse contexto social que leva à não vacinação é de imensa importância para as políticas públicas de imunização porque guarda uma relação direta com os riscos que são colocados frente a prevenção da saúde coletiva51. Em qualquer política pública de imunização sempre haverá uma parcela da população que não será submetida à vacinação, seja por total impossibilidade de alcance da medida, seja por razões médicas (recém-nascidos, idosos, grávidas ou portadores de imunodeficiência). Esse contingente populacional não imunizado, entretanto, se beneficiará da imunidade obtida pelo restante da população. Essa ideia decorre de um conceito matemático conhecido como “imunidade de rebanho”52, que não exige que todos sejam imunes à doença para que toda a população esteja protegida.

A “imunidade de rebanho” tem alicerce no número básico de reprodução de uma doença53, uma avaliação que leva em conta todas as características e particularidades da sua transmissão, como fase de desenvolvimento, formas de contaminação, grupos vulneráveis, taxas de suscetibilidade e de recuperação ou morte, que possibilitam a identificação de uma resposta para a contenção do surto. A partir dessa identificação, chega-se ao número de reprodução efetivo54 de uma doença que, no conceito de “imunidade de rebanho”, se reduzido para menos de um, gera a interrupção da cadeia de transmissão e da própria doença. É exatamente nesse contexto que os indivíduos que não podem se submeter à vacinação se beneficiam da proteção conferida ao remanescente da população. Evidentemente que há limites nessa proteção coletiva, os quais são estabelecidos frente ao potencial de infecção de cada doença em particular.

Dessa forma, deve haver um constante cuidado no sentido de que a parcela populacional não imunizada não atinja proporções tais que coloque em risco a chamada “imunidade de rebanho”. Sob outro ângulo, a não imunização deve ser reservada àqueles que efetivamente não podem receber a vacina, de maneira a preservar a imunidade coletiva, evitando-se o retorno de doenças erradicadas.

A repercussão global das razões que levam à não vacinação revela-se na publicação, em 10 de setembro de 2020, do artigo de Alexandre de Figueiredo, Clarissa Simas, Emilie Karafillakis, Pauline Paterson, e Heidi J Larson, intitulado “Mapping global trends in vaccine confidence and investigating barriers to vaccine uptake: a large-scale retrospective temporal modelling study”, na revista científica The Lancet55, que faz um mapeamento mundial em relação à confiança na vacinação e aponta as razões vinculadas a essa tomada de decisão. O estudo inclui percepções de segurança, eficácia e importância da vacina, fatores socioeconômicos e determinantes demográficos.

A pesquisa abrange o período compreendido entre novembro de 2015 e dezembro de 2019 e apontou que a confiança na importância, segurança e eficácia das vacinas caiu significativamente no Afeganistão, Indonésia, Paquistão, Filipinas e Coreia do Sul. Embora o Brasil ainda apresente índices seguros de confiança na vacina, apontou declínio de um patamar no score de todos os quesitos da pesquisa. Os resultados demonstram a relevância do monitoramento constante dessas tendências, objetivando intervenções positivas para estimular e manter a confiança nas vacinas, bem como a necessidade de pesquisas levando em consideração outros aspectos de maneira a investigar eventuais vínculos entre a polarização política, extremismo religioso, populismo e crenças de vacinação para que se tenha uma melhor compreensão dessas influências.56

5. Conclusão

A reação organizada da sociedade internacional e das diferentes nacionalidades aos danos concretos e imensos causados pela COVID-19 traz à consideração temas muito relevantes para o processo civilizatório e muito caros à sensibilidade de cada um de nós.

De um ponto de vista comportamental, são felizmente claros os fatos que demonstram o progressivo sentimento de solidariedade humana, de que entidades como a “Bill and Melinda Foundation” dão exemplos edificantes. De um ponto de vista científico e tecnológico, aos poucos se vão firmando vencedoras as teses de que a experimentação organizada, a ciência e o conhecimento bem fundamentados devem se sobrepor a opiniões emocionais ou ideológicas. Na economia, se constata que a diminuição radical do consumo e da produção em determinados setores terá que ser superada pelo esforço dos sobreviventes saudáveis. Portanto, saúde e sobrevivência são pressupostos da economia.

Mas é na ordem jurídica que se situam os temas relevantes objeto deste artigo. A pandemia e o seu combate desafiam considerações sobre interdependência e responsabilidade na ordem internacional, não apenas entre países, mas principalmente entre estes e organizações mundiais que os representem.

Internamente, pelo menos e certamente no Brasil, estão postas relevantes questões das relações jurídicas federativas. A responsabilidade comum e concorrente entre União e Estados pela saúde pública, constitucionalmente ditada e assegurada, imporá formas de convivência pela definição e cobrança dos direitos e obrigações de cada ente da Federação. Tudo a ser decidido segundo os princípios constitucionais do bem comum. No plano dos direitos individuais, isoladamente ou em confronto com direitos coletivos, a dupla condição de direito individual e obrigação de não contagiar o próximo faz da saúde, e especialmente das decisões judiciais que se possam demandar, um desafio à ponderação e à prudência como regras imprescindíveis de interpretação do Direito.


Referências

1 ALEXANDER, Sadof. The most important health wins of 2019. ONE, 12.12.2019. Blog. Disponível em: [www.one.org/international/blog/health-wins-2019/]. Acesso em: 29.09.2020.

2 THE LANCET. HIV. Published: April 2019. DOI: [doi.org/10.1016/S2352-3018(19)30086-4]. Disponível em: [www.thelancet.com/journals/lanhiv/article/PIIS2352-3018(19)30086-4/fulltext].

3 HIGHLEYMAN, Liz. Paciente de Londres tem remissão do HIV de longo prazo após transplante de células tronco. Publicação do GIV-Grupo de Incentivo à Vida, 05.03.2019. Disponível em: [www.giv.org.br/boletimvacinas/33/paciente-de-londres-tem-remissao-do-hiv-de-longo-prazo-apos-transplante-de-celulas-tronco.php]. Acesso em: 29.09.2020.

4 ESTADÃO. Paciente de Berlim primeiro homem curado do HIV morre de câncer nos Estados Unidos. O Estado de São Paulo, 30.09.2020. Saúde. Disponível em: [saude.estadao.com.br/noticias/geral, paciente-de-berlim-primeiro-homem-curado-do-hiv-morre-de-cancer-nos-estados-unidos,70003457626]. Acesso em: 29.09.2020.

5 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Who prequalifies Ebola vaccine, paving the way for its use in high-risk countries. 12 de nov de 2019. Newsroom. Disponível em: [https://www.who.int/news/item/12-11-2019-who-prequalifies-ebola-vaccine-paving-the-way-for-its-use-in-high-risk-countries]. Acesso em: 29.09.2020.

6 HEALTH POLICY WATCH. First-Ever Ebola Vaccine Gets World Health Organization “Pre-Qual” Seal of Approval. 12 de nov de 2019. Disponível em: [healthpolicy-watch.news/first-ever-ebola-vaccine-approval-welcomed-by-global-health-community/]. Acesso em: 29.09.2020.

7 ALEXANDER, Sadof. The most important health wins of 2019. ONE, 12.12.2019. Blog. Disponível em: [www.one.org/international/blog/health-wins-2019/]. Acesso em: 29.09.2020.

8 BRASIL. Decreto Legislativo 6 de 2020. Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, Edição Extra – C, 20.03.2020. p. 1.

9 BRASIL. Lei 13.979, de 06 de fev. de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 07 de fev. 2020, Edição: 27, Seção: 1, Página: 1.

10 STERNE, Jonathan AC et al. Association between Administration of Systemic Corticosteroids and Mortality among critically ill patients with COVID-19: a meta-analysis. Jama, 2020. Disponível em: [jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2770279]. Acesso em: 28.09.2020.

11 WORLD HEALTH ORGANIZATION et al. Corticosteroids for COVID-19: living guidance, 2 set 2020. World Health Organization, 2020. Disponível em: [www.who.int/publications/i/item/WHO-2019-nCoV-Corticosteroids-2020.1]. Acesso em: 29.09.2020.

12 BRASIL. Brasil possui quatro estudos clínicos de vacinas contra o coronavírus, 20.08.2020. Disponível em: [www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/08/brasil-possui-quatro-estudos-clinicos-de-vacinas-contra-o-coronavirus]. Acesso em: 29.09.2020.

13 PEIRIS, Malik; LEUNG, Gabriel M. What can we expect from first-generation COVID-19 vaccines? The Lancet. Published: September 21, 2020. DOI: [doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31976-0]. Disponível em: [www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31976-0/fulltext]. Acesso em: 29.09.2020.

14 BRASIL. Decreto 26.042 de 17 de dez de 1948. Promulga os Atos firmados em Nova York a 22 de julho de 1946, por ocasião da Conferência Internacional de Saúde. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, 25.01.1949. p. 1169.

15 UFRJ. Constituição da Organização Mundial da Saúde. 1946. Disponível em: [www.nepp-dh.ufrj.br/oms2.html]. Acesso em: 22.09.2020.

16 Idem.

17 UFRJ. Constituição da Organização Mundial da Saúde. 1946. Disponível em: [www.nepp-dh.ufrj.br/oms2.html]. Acesso em: 22.09.2020.

18 BRASIL. Decreto 10.212, de 30 de janeiro de 2020. Promulga o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Diário Oficial da União, Braília, DF, Seção 1, Edição Extra – A, 30.01.2020. p. 1.

19 Em tradução livre, Acelerador de Acesso de Ferramentas para COVID-19.

20 WORLD HEALTH ORGANIZATION. COVAX, the act-accelerator vaccines pillar. Disponível em: [www.who.int/initiatives/act-accelerator/covax]. Acesso em: 22.09.2020.

21 GAVI. The Vaccine Alliance. Our Alliance, About. Disponível em: [www.gavi.org/our-alliance/about]. Acesso em: 23.09.2020.

22 CEPI. About us, Why we exist. Disponível em: [cepi.net/about/whyweexist/]. Acesso em: 24.09.2020.

23 GAVI. The Vaccine Alliance. COVAX explained. Disponível em: [www.gavi.org/vaccineswork/covax-explained]. Acesso em: 22.09.2020.

24 WORLD HEALTH ORGANIZATION. COVAX, the act-accelerator vaccines pillar. Disponível em: [www.who.int/initiatives/act-accelerator/covax]. Acesso em: 22.09.2020.

25 GAVI. The Vaccine Alliance. COVAX explained. Disponível em: [www.gavi.org/vaccineswork/covax-explained]. Acesso em: 22.09.2020.

26 Idem.

27 GAVI. The Vaccine Alliance. COVAX explained. Disponível em: [www.gavi.org/vaccineswork/covax-explained]. Acesso em: 22.09.2020.

28 Idem.

29 BRASIL. Medida Provisória 1.003 de 24 de setembro de 2020. Diário Oficial, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 de setembro de 2020.

30 AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 839.

31 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 222-223.

32 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 889.

33 RAMOS, André de Carvalho. Op. cit., p. 892.

34 STF, Agravo em Recurso Extraordinário 271.286/RS, Rel. Min. Celso de Mello, Diário de Justiça 24.11.2000.

35 “Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular- e implementar- política sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HVI, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.”

36 STF, Suspensão de Tutela Antecipada 175/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, Diário de Justiça 30.04.2010.

37 “Esse foi um dos primeiros entendimentos que sobressaiu nos debates ocorridos na Audiência Pública- Saúde: no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes.”

38 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 225.

39 STF, Suspensão de Tutela Antecipada 175/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, Diário de Justiça 30.04.2010.

40 “A modalidade de intervenção estatal através da qual o Estado utiliza bens móveis, imóveis e serviços particulares em situação de perigo público iminente” (CARVALHO FILHO, J. S. Manual de Direito Administrativo. 33. ed. São Paulo: Atlas, 2019. p. 1266).

41 PAIM, Jairnilson. O que é o SUS. SciELO-Editora FIOCRUZ, 2009. p. 30. Versão digital. Disponível em: [portal.fiocruz.br/livro/o-que-e-o-sus-e-book-interativo]. Acesso em: 04.10.2020.

42 “Art. 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.

Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional.”

43 Conforme consta do próprio site do governo, contempla crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas. Disponível em: [portalarquivos.saude.gov.br/campanhas/pni/]. Acesso em: 04.10.2020.

44 “Art. 3º A vigilância epidemiológica será exercida, em todo o território nacional pelo conjunto de serviços de saúde, públicos e privados, habilitados para tal fim, organizados em Sistema específico, sob a coordenação do Ministério da Saúde, observadas as diretrizes gerais do Sistema Nacional de Saúde. Art. 4º O Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica é da responsabilidade institucional do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios Federais.”

45 “Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I – a execução de ações: a) de vigilância sanitária; b) de vigilância epidemiológica; […].”

46 STF, Suspensão de Tutela Antecipada 175/CE, Rel. Min. Gilmar Mendes, Diário de Justiça 30.04.2010.

47 “Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

[…]

III – determinação de realização compulsória de:

[…]

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

[…].”

48 Art. 67 da Lei 8.213/91: “O pagamento do salário-família é condicionado à apresentação da certidão de nascimento do filho ou da documentação relativa ao equiparado ou ao inválido, e à apresentação anual de atestado de vacinação obrigatória e de comprovação de freqüência à escola do filho ou equiparado, nos termos do regulamento” (g.n.).

49 Há alguns estados em que a exigência já está em vigor, como na Bahia e Paraná. Em São Paulo, a medida foi cogitada em 2018 e entrou em vigor em 2019. A princípio, o propósito não é impedir a criança de frequentar a escola ou creche, mas sim de coibir os pais à regularização, quando verificada ausência de aplicação de vacina qualificada como obrigatória. FÉLIX, Paula. Justiça obriga famílias a vacinar filhos; pais podem levar multa e até perder guarda da criança. O Estado de São Paulo, São Paulo, 14.01.2020. Disponível em: [saude.estadao.com.br/noticias/geral,justica-obriga-familias-a-vacinar-filhos-pais-podem-levar-multa-e-ate-perder-guarda-da-crianca,70003157226]. Acesso em: 16.01.2020.

50 IRIARTE, Jorge Alberto Bernstein. Autonomia individual vs. proteção coletiva: a não-vacinação infantil entre camadas de maior renda/escolaridade como desafio para a saúde pública. Cad. Saúde Pública 2017; 33(2):e00012717; doi: 10.1590/0102-311X00012717.

51 Idem.

52 YATES, Kit. The Maths of Life and Death. London: Quercus, 2019. p. 3750-3843, versão digital.

53 YATES, Kit. Op. cit., p. 3727.

54 Idem.

55 FIGUEIREDO, Alexandre; SIMAS, Clarissa; KARAFILLAKIS, Emilie; PATERSON, Pauline; e LARSON, Heidi J. Mapping global trends in vaccine confidence and investigating barriers to vaccine uptake: a large-scale retrospective temporal modelling study. The Lancet. Disponível em: [doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31558-0]. Acesso em: 29.09.2020

56 Idem.

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